O dicionário Priberam, por exemplo, regista o adjectivo homoafectivo, assim como o substantivo feminino homoafectividade, referindo-se ambos aos afectos homossexuais. Por outro lado, uma breve pesquisa via Google encaminha-nos imediatamente para milhares de entradas (de sítios sobretudo brasileiros) onde os referidos termos são usados em múltiplos contextos: «união homoafetiva»; «direito homoafetivo»; «o direito dos homoafetivos»; «a homoafetividade e a família»...
Maria Berenice Dias (ex-advogada, desembargadora e escritora brasileira, autora do livro União Homoafetiva — O Preconceito e a Justiça, 4.ª ed., 2009, cuja 1.ª ed., de 2001, curiosamente, apresenta o título União Homossexual – O Preconceito e a Justiça ), por exemplo, num artigo intitulado «Politicamente correto», publicado pela primeira vez em 2002, na revista electrónica mensal brasileira Âmbito Jurídico, chega mesmo a afirmar ter sido ela a criar este neologismo, para se referir às relações homossexuais:
No princípio, chamavam-se sodomia as relações de pessoas do mesmo sexo. Seguiu-se a expressão homossexualismo, que foi afastada por significar desvio ou transtorno sexual. O sufixo ismo utilizado para identificar doença foi substituído por dade, que quer dizer um modo de ser. Assim, surgiu a palavra homossexualidade, que, na Classificação Mundial das Doenças — CID, passou a nominar: transtorno da preferência sexual. Jurandir Freire Costa, com inegável autoridade, denuncia a conotação pejorativa de tais expressões e introduz o vocábulo homoerotismo, pretendendo revalorizar as experiências afetivo-sexuais. Com essa mesma intenção, mas buscando subtrair o teor sexual dos relacionamentos interpessoais, acabei por criar o neologismo homoafetividade, para realçar que o aspecto relevante dos relacionamentos não é de ordem sexual. A tônica é a afetividade, e o afeto independe do sexo do par.
Nesta mesma linha de raciocínio, a investigadora Tereza Maria Machado Lagrota Costa, da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Vianna Júnior, de Minas Gerais, no estudo de 2003, ADOÇÃO POR PARES HOMOAFETIVOS: uma abordagem jurídica e psicológica, conclui justamente que «Ainda hoje a adoção por pares homossexuais é vista com muito preconceito, como se o fato de ser homossexual fosse algo anormal, que poderia influenciar na educação da criança.». Por este mesmo facto, continua a referida investigadora, «A Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS e Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), Maria Berenice Dias, está na vanguarda do Brasil na luta contra essa opressão infundada contra os homossexuais. Aliás, o único fundamento encontrado com bastante força é o preconceito. Ela adota o termo HOMOAFETIVO E NÃO HOMOSSEXUAL, por se tratar já de um termo carregado de preconceito. Segundo a magistrada, se a realidade social impôs o enlaçamento das relações afetivas pelo Direito de Família e a moderna doutrina e a mais vanguardista jurisprudência definem a família pela só presença de um vínculo de afeto, devem ser reconhecidas duas espécies de relacionamento interpessoal: as relações heteroafetivas e as relações homoafetivas». Aproveito para abrir aqui um parêntesis apenas para dizer que, mais uma vez, o dicionário Priberam, por exemplo, acolhe os termos heteroafectivo e heteroafectividade, ambos referentes aos afectos heterossexuais.
Percebo, porém, a perspectiva do estimado consulente, pois, segundo o Dicionário Houaiss, a Infopédia, ou a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra (p. 111), por exemplo, o elemento de formação [hom(o)]- exprime, de facto, a ideia de análogo, igual, semelhante, do grego homós, «igual; semelhante; o mesmo; do mesmo modo; igualmente». Assim, por exemplo, o adjectivo homoaxial significa justamente «cujos eixos são os mesmos» (Dicionário Houaiss). Por esta ordem de ideias, «relacionamento homoafectivo» significaria, portanto, como refere o consulente, algo semelhante a «relacionamento em que existem os mesmos [o mesmo tipo de] afectos».
No entanto, se pensarmos, por exemplo, na palavra homofobia, reparamos que esta significa «medo irracional em relação à homossexualidade» (Infopédia); «rejeição ou aversão a homossexual e à homossexualidade», derivada da junção de hom(o)- + -fobia (Dicionário Houaiss), e não, como se poderia eventualmente supor, algo parecido com «medos semelhantes». Valerá a pena dizer que o dicionário Priberam acrescenta ainda, em relação à formação deste vocábulo, a seguinte nota curiosa: de homo[ssexual] + fobia, como se homo funcionasse aqui como uma espécie de abreviatura da palavra homossexual, estando nós na presença de um mecanismo compatível com o da elipse, neste caso vislumbrada através da ausência do segmento [ssexual]. Neste enquadramento, podemos mesmo dizer que homo- se tornou, na verdade, num pseudoprefixo, tal como Cintra e Cunha, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (pp. 113-115) o definem: trata-se de um radical latino (ou grego) que adquiriu sentido especial nas línguas modernas, à semelhança do que aconteceu, por exemplo, com auto-, que, significando originariamente «mesmo, próprio» (ex.: autodidacta = que estudou por si mesmo; autógrafo = escrito do próprio autor), acabou por passar, «com a vulgarização de auto, forma abreviada de automóvel, a ter este significado em uma série de novos compostos: auto-estrada, autódromo, etc.» O mesmo aconteceu, por exemplo, com electro- ou com aero-. Aliás, o Dicionário Priberam propõe um segundo sentido para o elemento de composição [homo-]: «Exprime a noção de homossexual (ex.: homoerotismo).»
Dito isto, parece-me que o vocábulo homoafectivo (de homo[ssexual] + afectivo) seguirá a mesma linha de raciocínio de construção do termo homofobia, por exemplo, partindo justamente da já citada segunda acepção proposta para o elemento de formação [-homo].
Sendo assim, e tendo em conta esta reflexão, julgo que o recurso à proposta do estimado consulente, «relacionamento homossexoafectivo», não se revelaria produtivo nem necessário. Além do mais, também para este termo, acabaria por se levantar o mesmo tipo de problemas, já que nada nos garante que a referida expressão não pudesse ser interpretada, do ponto de vista do seu sentido, como «relacionamento em que existem os mesmos [o mesmo tipo de] afectos sexuais».
Em conclusão, e tendo em conta o exposto, direi, portanto, que me parece aceitável e compreensível a construção e o significado do termo homoafectivo.