De facto, a utilização da expressão «ter que» em vez de ter de – este, sim, definido como um dos verbos da modalidade deôntica, correspondente a dever, para exprimir «uma obrigação directa ou relatada» (Mira Mateus et alii, Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 249) –, poderia ser considerada uma construção incorrecta, uma vez que negligencia a norma linguística. Mas o exemplo apresentado não é o de um discurso/texto comum, constrangido à utilização normativa do padrão. Enquanto texto literário, goza do estatuto de diferença próprio de toda a obra de arte – o da liberdade poética –, pois a escrita poética/literária move-se, precisamente, no universo da criação do sujeito poético.
Assim, ao depararmo-nos com estruturas invulgares num texto literário, não poderemos esquecer-nos de que «a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 147).
Por isso, aqui, não se trata de incorrecção, mas de um caso de licença/liberdade poética que nos relembra que «a literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios» (idem, p. 95).