Todos os termos apresentados são característicos de Portugal, sendo um deles – bica – considerado típico de Lisboa. Dois deles, garoto e galão, estão aliás explicitamente identificados como lusitanismos em dicionários brasileiros (ver mais abaixo). O seu uso como termos que designam diferentes tipos de café só deve ter surgido no decurso do século XX, a avaliar pela sua ausência em dicionários mais antigos, como os de Cândido de Figueiredo (Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 3.ª edição), e Domingos Vieira (Diccionario Portuguez, 1871), embora neste último surja a forma galão, associada a acepções que estarão provavelmente na génese do actual galão.
Nos comentários aos termos refiro os dicionários consultados pelas seguintes siglas:
DA: Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Lisboa: Verbo, 2001 (conhecido por «Dicionário da Academia»).
DAB: Artur Bivar, Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, Porto, Edições Ouro, s. d.
DCA: Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Delta, 1958.
DCF: Cândido de Figueiredo, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 3.ª edição.
DDV: Domingos Vieira, Grande Diccionario Portuguez, Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de Moraes, 1871-1874.
DH: António Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001.
DJPM: José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa.
DMC: Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, edição compacta do Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António Morais da Silva, Lisboa; Confluência/Livros Horizonte, 1980.
DM: Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, São Paulo, Melhoramentos, 1998.
DNA: Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua portuguesa, Rio de Janeiro, 1999.
DPE: Dicionário da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1998.
DU: Francisco S. Borbas (org.), Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, São Paulo, UNESP, 2004.
Agradeço também a informação e as sugestões dos seguintes consultores do Ciberdúvidas: J. F. Peixoto da Fonseca, Edite Prada e Rui Gouveia.
Passo a comentar cada um dos termos referidos na pergunta.
Garoto
A definição dada pelo DA é a seguinte: «pequena porção de café com leite servido em chávena pequena, em cafés, pastelarias…» Outros dicionários portugueses (por exemplo, o DJPM e o DPE) confirmam o conteúdo desta definição. O emprego de garoto com esta acepção parece ter origem em Lisboa.1 De quatro dicionários brasileiros consultados (DH, DNA, DU e DM), dois, o DNA e o DH, indicam que este uso da palavra é um lusitanismo.
Contudo, não consegui desvendar o “mistério” da sua origem. Não há qualquer explicação para que a palavra, com o sentido corrente de «criança», tenha passado também a designar esta bebida. Compreende-se que o termo se adequa metaforicamente ao tipo de bebida, para referir a sua “pequenez”, dado tratar-se de um café com leite curto, servido em chávena pequena, mas não pude recolher qualquer explicação histórica para o aparecimento deste sentido de garoto.
Meia-de-leite
Este termo está registada no DA como um composto que se escreve com hífen, ou seja, o termo está lexicalizado, com o sentido de «chávena grande de café com leite, servida em pastelarias ou cafés». É classificado como regionalismo e pertencente à gíria. O plural é meias-de-leite.
A sua origem não é explicada no referido dicionário, mas compreende-se que tenha que ver com um café servido numa chávena «meia de leite», isto é, em que metade do seu conteúdo é leite.
Galão
Entre os dicionários brasileiros consultados, o DNA, o DU e o DCA registam o termo, o primeiro classificando-o como lusitanismo, e o segundo sem qualquer menção.
Os dicionários portugueses consultados registam-no, mas divergem quanto à entrada em que o colocam, dada a polissemia da forma galão, isto é, devido a esta abranger diferentes acepções que podem sugerir diferentes etimologias.
Assim, é certo que o significado corrente é o de «copo alto de café com leite» (DMC), mas constata-se que galão, nessa acepção, se encontra, no DA, na mesma entrada que galão, «unidade de medida para líquidos»; no DJPM, o termo está incluído na entrada de galão, «tira entrançada […]».
Se recuarmos à lexicografia mais antiga, deparamos em DDV com a seguinte definição de galão: «Galão, do fr. “gallon”, tecido de ouro, de prata, de seda, mais estreito e mais espesso que a fita, e que, collocado na extemidade dos vestidos ou dos moveis, lhes serve de ornato […].» Na mesma entrada, incluem-se as expressões copo com galão, definido como tendo «bordadura de ouro sobre o vidro», e copo com galão, relativo a «copo que não está bem cheio de vinho, até á borda, fallando dos bebedores» (idem, ibidem). Note-se que este galão ou «copo mal cheio» é também usado no Brasil, mas, segundo o DCA, designa a «espuma que fica no alto do copo de chope ou cerveja». Por outro lado, F. V. Peixoto da Fonseca (comunicação pessoal) considera que galão deve este significado ao facto de a medida de café a utilizar no copo ter a largura do galão de uma farda.
Historicamente, portanto, parece que o café a que se chama galão está relacionado com galão, no sentido de «fita», «faixa». Resta saber qual a «faixa» que os falantes tinham em mente. A da altura do café no copo, que lembrava a largura do galão de uma farda? A faixa de um certo tipo de copo em que era servida a bebida? O copo com galão, isto é, «que não está cheio até a borda», tendo a expressão e a ideia sido transferidas do acto de beber vinho para o de beber café com leite? Uma resposta clara a estas perguntas não pôde ainda ser formulada.
Bica
É um termo conhecido em Portugal, mas que se relaciona tipicamente com os cafés de Lisboa. Orlando Neves, no Dicionário da Origem das Palavras (Lisboa, Editorial Notícias; 2001), explica que este uso se deve à «[…] necessidade de diferenciar o café que, noutros tempos, era tirado de uma «máquina» através da sua «bica» e o que provinha da cafeteira (também chamada de «saco») que era servido num copo de vidro».
Resta esclarecer que uma bica tem o sentido geral de «tubo delgado, pequeno canal, telha ou meia-cana, por onde passa a água de uma fonte, de um chafariz, de um tanque... caindo de certa altura» (DA).
Abatanado
O termo está registado só no DMC, definido como «porção de café equivalente ao conteúdo da xícara própria, mas servida em xícara maior». Os outros dicionários, portugueses e brasileiros, nada registam. Tratar-se-á de um termo de difusão recente? Além de abatanado, procurei formas que com esta estivessem relacionadas, como “abatanar”, mas sem êxito.
Sei que em espanhol existe o termo “abatanar”, «bater com pisões na tecelagem», e “abatanado”, que, por extensão semântica, acabou por designar um estado psicológico de abatimento. Será que o português abatanado surge por influência do espanhol, para depois ter um desenvolvimento semântico próprio? Poder-se-ia conjecturar que a força do café é atenuada («abatanada») pela junção de mais água ou leite. É uma mera hipótese que requer elementos históricos e linguísticos seguros sobre a origem de abatanado.
1 Agradecemos ao consulente Rui Magro (Porto, Portugal) a seguinte achega: «[...] a palavra garoto é uma expressão lisboeta. No Porto usa-se o termo pingo para o café com leite numa chávena pequena de café.»