Os inventores das línguas ficcionais - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os inventores das línguas ficcionais
Os inventores das línguas ficcionais
Os casos dos filmes Guerra dos Tronos, Duna, The Wiitcher, Halo e Marvel

«(...) O que faz um conlanger? Na verdade, o que é um conlanger? Dois dos maiores criadores de línguas ficcionais do mundo estiveram em Lisboa para falar sobre o seu trabalho – embora ele fale por si, sobretudo para quem segue o universo de A Guerra dos Tronos, DunaThe WitcherHaloMarvel ou muitos outros títulos em que se ouve alto valirianodothrakisardaukar ou várias versões do que falam elfos em mundos como o de Witcher ou Thor. Os sons são exóticos, mas quando todo o sistema está construído, fazem muito sentido. David J. PetersonJessie Sams são linguistas, mas na verdade são construtores de línguas, inventores de comunicação, engenheiros de palavras. (...)»

Uma conlang é uma «constructed language», ou seja, uma língua inventada para fins ficcionais e a sua criação tornou-se uma profissão das indústrias criativas academicamente aceite especialmente nos últimos 15, 20 anos. «A Guerra dos Tronos ajudou», diz David J. Peterson ao Público depois de ter estado numa palestra que não resistiu aos trocadilhos com as frases mais conhecidas da criação de George R.R. Martin. Game of Tones, titulava a empresa portuguesa Unbabel no ecrã. «Linguistic implementation is dark and full of (t)errors»1, insistia.

Uma sala que é uma piscina de bolas de plástico, uma parede com skates em modo self-service – os conlangers David J. Peterson e Jessie Sams sorriem ao passar pelos escritórios (daqui trabalham com a Microsoft ou a Beyond Meat, por exemplo) onde vieram falar sobre o papel da linguagem na construção da confiança para públicos globais. Peterson deu ainda uma masterclass sobre alto valiriano – até ensinou como escrever Ronaldo na língua mais incendiária da terra ficcional do universo de Tronos.  

O trabalho de Peterson na série A Guerra dos Tronos (2011-19), fenómeno cultural na última década, e depois em House of the Dragon (2022) é o grande chamariz para explicar o que é um conlanger, mas há décadas que há quem fale klingon por causa de [/Star-Trek] Star Trek ou estude a língua dos elfos criada por J.R.R. Tolkien para O Senhor dos Anéis. O klingon, aliás, está na academia há muito e também no popular site de aprendizagem de idiomas Duolingo. Agora, também lá mora o alto valiriano, língua ficcional em que muita gente sabe mandar um dragão cuspir fogo (dracarys). 

As línguas ficcionais penetram no mundo quotidiano de várias formas, seja num meme ou num casamento bem real que terá sido celebrado em alto valiriano e que correu a Internet. David Peterson está roído de curiosidade para saber se a língua foi usada correctamente, visto que «I do»2 não tem propriamente tradução na língua criada por Martin e cujo sistema o linguista construiu meticulosamente. «As línguas que criamos podem ser usadas para qualquer finalidade. Línguas como as de A Guerra dos Tronos não podem é ser usadas no dia-a-dia como outros idiomas, porque não há palavras para muitas das coisas de que falamos — avião, Internet, baixar o som da televisão», esclarece.

A maior língua que criou, em termos de extensão e complexidade, é o dothraki falado pelo povo do mesmo nome de A Guerra dos Tronos. Já escreveu livros sobre a invenção de línguas e expandiu o seu talento para ThorDoutor EstranhoDuna, The Witcher, Shadow and Bone ou Penny Dreadful. A companheira, Jessie Sams, passou de professora de linguística a “conlanger” a tempo inteiro e trabalha agora com ele no segundo Duna, em Halo, assinou línguas em Vampire Academy ou The Witcher. São uma dupla habituada a pensar de forma esquemática. E a trabalhar na corda bamba.

Arqueólogos linguísticos 

Podem visitar as filmagens, mas não têm poder sobre a escolha do take em que a sua língua é mais bem executada. David constrói a língua («o mais difícil de criar é o sistema verbal») e depois grava-a em ficheiros de som para ajudar na pronúncia e exemplificar a fonética. Tem conversas com os autores, sejam eles Martin ou Denis Villeneuve, mas sabe que o seu poder é finito. 

«Quando trabalhamos com material já existente, mergulhamos na cultura como um arqueólogo faria», explica. «É mais fácil quando estamos a trabalhar com algo completamente novo ou que não tem um grande historial, porque podemos não ser apenas arqueólogos, mas criadores dessa cultura. Quando já há material, e se esse material ainda está a ser criado, o que é o caso com George R.R. Martin, é mais complicado.» Os livros ainda não foram escritos e há tanto mistério em torno da cultura de Valíria que «se se de[sse] o caso de criarmos algo que George R.R. Martin contradiga mais tarde, isso seria lamentável. A minha única opção seria desfazer o que fizemos», suspira.

«Uma coisa muito difícil para mim é que criei o sistema de parentesco em alto valiriano e comecei com uma palavra, valonqar, que para mim significava "irmão mais novo". Construí um sistema de parentesco muito detalhado com base nisto mas há uma teoria sobre valonqar poder referir-se a uma personagem mulher. Conforme isso for resolvido nos livros, e se Martin decidir que significa "irmã mais nova", isso destruirá completamente todo o meu sistema e terei de o desfazer. Seria uma pena. Sabia isso à partida e tive de tomar uma decisão.»

Há diálogo com o autor? «Sim, mas isso é o tipo de coisa que é um segredo tal que ele nunca mo revelaria.»

A dureza de um sardaukar em Duna tem que ver com a rispidez e o gutural da língua, sim, mas se não houver material de base a respeitar, a criação de um idioma começa por coisas muito mais prosaicas. «O que influencia verdadeiramente são coisas como se diz "olá" ou "obrigado". Expressões idiomáticas que temos de aprender e temos de ter em conta se se trata, por exemplo, de uma sociedade de senhores da guerra. Como dizem adeus? Provavelmente diriam "boa cavalgada", como os dothraki», reflecte Jessie Sams.

Não há dúvidas quanto ao que é mais fácil ou prazenteiro: criar algo de base. Foi o que os fez dedicar-se a esta vida a tempo inteiro, sobretudo Jessie, que deixou a docência para criar línguas. David começou a inventar línguas no segundo ano da universidade, em pleno ano 2000, meio perdido sobre o que queria fazer profissionalmente. Teve sorte, acredita. Especialmente quando, depois de dar aulas no ensino politécnico, ficou seis meses desempregado. Foi aí que surgiu A Guerra dos Tronos, uma série da HBO que precisava de alguém que desse vida e estrutura a uma série de línguas inventadas para um mundo de fantasia. 

Uma disciplina mal amada

Jessie Sams dava aulas de línguas inventadas e de linguística na Universidade Estadual Stephen F. Austin e doutorou-se em linguística pela Universidade do Colorado. «O meu departamento apoiava-me muito, mas na verdade tive de escrever uma justificação para que a disciplina de Línguas Inventadas contasse para a licenciatura. Algumas universidades não aprovam os créditos destas disciplinas», detalha.

 

Na comunidade da linguística, criar línguas é um exotismo, uma irmã mais nova da disciplina mãe? «Já não», dispara David J. Peterson sem reprimir o sarcasmo.

«Algumas pessoas vêem-na como uma forma de arte e uma expressão bonita do que uma língua pode fazer», continua Sams, mais sorridente. «Ao criar uma língua, percebemos melhor a complexidade dos sistemas de linguagem e apreciamos um pouco mais o que fazemos todos os dias com a nossa língua materna», além de ajudar a fazer paralelos com outras línguas.

David está à cabeceira da mesa onde decorre a entrevista e não perde o sorriso sardónico. Afinal, o que pensa do estatuto dos conlangers?

«Quando comecei, falava-se da criação de línguas como uma piada. Depois as coisas começaram a mudar, especialmente com A Guerra dos Tronos. Depois de começar a dar palestras em universidades… viam quantas pessoas apareciam e quantas pessoas se inscreviam nos cursos. De repente mudaram de abordagem e rapidamente começaram a surgir aulas sobre o tema — às vezes dadas por pessoas sem qualquer ligação à criação de línguas, algo que tornou a comunidade de conlangers muito defensiva. Agora, acho que há muitos linguistas irritados com os ‘conlangers’ porque sentem que a criação de línguas recebe mais atenção do que o trabalho deles. Foi preciso muito para sermos convidados [para o seu mundo]. Mas tivemos de entrar pelo rés-do-chão.»

Na sede lisboeta da Unbabel há pouca gente, mas muita está a assistir online à palestra e masterclass destes arquitectos de idiomas. Da inteligência artificial às sílabas tónicas, passando pela anatomia e pelos géneros que uma língua inventada pode ter (no alto valiriano são quatro principais: terra, água, sol e lua), David e Jessie falam de forma apaixonada sobre a sua profissão. Vivem e respiram línguas, mas não são fluentes em nenhuma das suas criações. «É quase uma impossibilidade. Não temos palavras para as nossas experiências diárias nas línguas que criamos. Podíamos tentar viver as nossas vidas em valiriano nas próximas três semanas? Não, porque ficaríamos muito restringidos quanto aos temas sobre os quais poderíamos falar porque não há vocabulário», garante Sams. «Onde está o comando da Apple TV?», exemplifica Peterson. Podia só responder a quem o encontrasse: kirimvose, ou obrigado.

Há línguas com as quais são mais rápidos na tradução, evitando consultas repetidas às suas gramáticas inventadas. A coerência é o segredo para o sucesso de uma língua fictícia ser convincente. «O que queremos, essencialmente, é que um fã dedicado possa começar a deslindar a língua sozinho», explica Jessie Sams. «Numa série, uma língua é um adereço com o qual os espectadores podem de facto interagir.»

Estiveram meros três dias em Lisboa e já regressaram à Califórnia. Estão a trabalhar em novas e velhas séries e filmes e David mantém um laboratório mental sobre línguas ficcionais ainda mais inovadoras. «Sempre quis fazer uma língua baseada em texturas», diz à audiência. Teria como base alcatifa, lixa e seda. Outra ideia é construir uma língua baseada em música. «Acho que já a deslindei. E mais não disse.

Cf.  Línguas artificiais

1 N. E. (21/12/2022) – Trata-se de um trocadilho em inglês, entre a palavra error, «engano, erro, lapso», e terror, «terror». A frase inglesa pode ter a seguinte tradução livre: «A realização linguística é sombria e repleta de (t)erro(re)s.»

2 N. E. (21/12/2022) – Numa cerimónia de casamento, «I do» é a resposta afirmativa equivalente a «sim, quero», dada pelos noivos para formalizar a sua união.

 

 

Fonte

Texto da autoria da jornalista portuguesa Joana Amaral Cardoso, in Público de 18 de dezembro de 2022, com o título original "Os inventores de línguas de A Guerra dos Tronos e Duna". Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.

Sobre a autora

Jornalista do diário português Público.