«[...] [Uma] coisa surpreendente sobre o verbo é o seu engenho na adaptação à pessoa de que se fala.»
O verbo é um engenhoso dispositivo gramatical. Serve, claro, para nos dizer que a mãe abandonou o pai, mas também indica o momento em que o evento ocorreu. Abandonado, de facto, significa que já aconteceu. Se tivéssemos dito abandonaria, isso significaria que a mãe teria definido alguma condição para ficar. Tudo isto graças à sua plasticidade, que evoca a dos invertebrados como o polvo, cujas articulações têm um potencial infinito de movimento. Se dizemos que o pai, depois da partida da mãe, não faz comida, estamos a dizer que ele não cozinha agora, atualmente. Talvez ele cozinhe no futuro, onde cozinhe indica que ele pode ou não, veremos, depende de como o seu humor evolui, de quanto tempo leva a sair da sua depressão, coitado. Se a ultrapassar, cozinhará novamente. Esse cozinhará refere-se a uma época em que voltará a fazer arroz branco ou esparguete com tomate para o jantar.
Outra coisa surpreendente sobre o verbo é o seu engenho na adaptação à pessoa de quem se fala. Não dizemos «a mãe "saíram" de casa», porque mãe é singular, e saíram, plural. O verbo sabe isso, sabe quando deve estar num número ou no outro. Coloca-se um ela à frente do verbo, e este diz automaticamente abandona: «ela abandona». Nem mesmo uma criança de dois anos diria «ela "abandonas"», e não devido ao mérito da criança, mas devido à inteligência do verbo, que conhece a posição que deve adotar de acordo com a pessoa que executa a sua ação. O verbo gosta muito de fazer pose. Por vezes, como na frase «acabaste de abandonar o teu marido», usa outro verbo, neste caso acabar, para levar a cabo a sua torção[1]. Falaremos noutro dia sobre quando o pai deixou a mãe e a mãe deixou de fazer canelones recheados com atum. O verbo abandonar, ao contrário de outros verbos, é regular. Demasiado regular para o meu gosto.
[1 N. E. – No original, lê-se: «En ocasiones, como en la frase “tú has abandonado a tu marido”, se ayuda de otro verbo, el haber en este caso, para llevar a cabo su torsión.» Como a forma «has abandonado», do pretérito perfeito composto do espanhol, não tem o mesmo significado nem do pretérito perfeito simples do indicativo (abandonaste) nem do pretérito perfeito composto do indicativo (tens abandonado) da conjugação verbal do português, optou-se, por, na tradução, se selecionar um caso da chamada conjugação perifrástica, a construção acabar de + infinitivo, de modo a conseguir algum paralelismo com o caso espanhol.]
Apontamento publicado no jornal El País, em 5 de novembro de 2021.