Reagindo a um artigo de António Pinto Ribeiro, intitulado "Para acabar de vez com a lusofonia", a linguista luso-brasileira Ida Rebelo contrapõe: «Dizer que lusofonia é invenção fascista e manipuladora é como insistir que temos de pertencer a qualquer coisa, menos à língua que nos serve de instrumento de expressão e crescimento.» Estas e outras considerações, escritas expressamente para o Ciberdúvidas, encontram-se no texto que a seguir se apresenta.
O artigo "Para acabar de vez com a lusofonia", de António Pinto Ribeiro, chamou-me a atenção por remeter-me imediatamente a um outro título Para acabar de vez com Tordesilhas1 livro que pertence à minha área de investigação e tem a proposta de superar, metaforicamente, o tratado que promovia a separação drástica entre os «mundos descobertos». Seus vários autores buscam aproximar as línguas que predominam na Ibéria, desvelando pontos de contato entre ambas. Já o texto que menciono visa a fomentar a eliminação sumária de um movimento que, não obstante as intenções (boas ou más) de quem quer que se tenha apoderado dele ao longo da história recente, está recheado de possibilidades para todos que por ele são contemplados: povos, etnias, representações artísticas e países.
Fiquei com a sensação de que o autor teria um percurso distante das lides relacionadas à cultura. Para minha surpresa, descobri que tem um percurso profissional feito no que considero um santuário da cultura que é a Fundação Gulbenkian. A partir de então, faço a ressalva de que as pessoas têm mesmo dias e até pode ser que este meu texto seja considerado um dos que foi escrito em um mau dia, ainda que eu considere o contrário.
Uma segunda ressalva é que, não sendo originária das ciências sociais como o autor desse artigo que até já encontrou resposta em outro texto2 de qualidade, limito-me a fazer comentários de cunho linguístico-cultural, área à qual pertenço e à qual não pretendo renunciar.
Como nas concepções de lusofonia são contemplados visões e enfoques vários, venho, como os judeus diante de um falecido, adicionar uma respeitosa pedrinha, com a diferença que não falamos de um morto, mas, felizmente, de um movimento bem vivo e atuante para sorte de 200 milhões de seres humanos.
Uma bela – e eficiente – definição de lusofonia que conheço chama-se Língua – vidas em português, um filme de Vitor Lopes que, suponho, poucos terão visto, mas que todos deveríamos ver e rever. Trata-se de um documentário que dá voz a alguns famosos e a vários desconhecidos, todos integrantes do contingente humano representativo dessa abstrata lusofonia. Tendo esse filme como mote, passo a relacionar, brevemente, exemplos que, considero, integram esse conceito de lusofonia. Insisto no fato de que se trata de uma visão subjetiva e incompleta como são, aliás, as visões do ser humano, já dizia Carlos Drummond de Andrade3: «Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.»
Lusofonia é ter Guimarães Rosa e Mia Couto, com defasagem no tempo de várias décadas no mesmo século, a criarem, de forma tão poética e eficiente, novas palavras. Um em cada continente, um virado para o Atlântico e o outro para o Índico. Ambos sendo lidos, compreendidos e admirados por “lusófonos” das mais diversas procedências.
Lusofonia é a Inês Pedrosa, escritora portuguesa, publicar um livro4 no Brasil e manter a ortografia portuguesa e o livro vender muito bem obrigada, apesar das más línguas que dizem que brasileiros não entendem o que os portugueses dizem.
É ter uma das maiores especialistas em Fernando Pessoa nacionalidade brasileira e um sobrenome italiano, Cleonice Berardinelli, vinculada a uma universidade católica gerida por padres jesuítas espanhóis.
Lusofonia é um comercial de operadora moçambicana5 de telemóveis ser falado em português e recheado de gírias, uma das quais é o neologismo “jobar” que se origina em um termo do inglês com terminação verbal do português e todos entenderem.
Lusofonia é Cesária Évora cantar em crioulo cabo-verdiano e fazer sucesso no mundo inteiro, inclusive nos países da CPLP, onde se inclui Portugal, naturalmente.
Lusofonia é uma estudante brasileira de relações internacionais, escolher falar sobre Moçambique, passado e presente e, para tal, entrevistar o marido da tia que nasceu em Lourenço Marques e saiu de lá pré-adolescente, antes que passasse a chamar-se Maputo. Na empresa sul-africana em que trabalha esse senhor, um dos pontos positivos que o diferenciam de outros tantos, além da excelente formação acadêmica, é ser bilíngue verdadeiro, fala inglês e português como línguas maternas e tem da cultura e das condicionantes étnicas de Moçambique, conhecimento próprio de um nativo, porque nunca deixou para trás os vínculos com o país e as pessoas.
Lusofonia é quando o radical latino luso se junta à terminação grega fonia para criar harmonia, debate, tolerância, solidariedade, informação e tudo isso numa via de mão-dupla, em que as partes envolvidas podem ir e vir, em que ninguém perde ao ceder a palavra, em que só se ganha em experiências.
Passo a citar Saramago, no já mencionado filme: «Como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica, à língua com que se escreve?» Dizer que lusofonia é invenção fascista e manipuladora é como insistir que temos de pertencer a qualquer coisa, menos à língua que nos serve de instrumento de expressão e crescimento. Seria ignorar a sabedoria de Mia Couto a dizer que «no fundo, não se está a viajar do ponto de vista geográfico, mas se está a viajar por pessoas».
Afinal, o que vem a ser lusofonia senão a possibilidade de existência e permanência das várias culturas entrelaçadas que lançam mão da mesma e distinta língua portuguesa para descrever, ensinar e partilhar essas culturas? Seria aceitável, diante disso, promover a rejeição indiscriminada de toda e qualquer iniciativa que se autoproclame lusófona sob a alegação de trazerem segundas intenções colonialistas e opressoras das identidades dos povos envolvidos? Não seria o oposto disso deixar falar por si mesmos os fatos e os interessados, ao invés de apresentar-se como protagonista de uma cena assumindo-se ventríloquo de uns quantos? Não seria esse o papel que este Ciberdúvidas vem assumindo ao longo dos anos de dar voz (e respostas) a todos os sotaques e às diferentes edições da gramática, democraticamente misturando num mesmo caldeirão elementos que muitos consideram incompatíveis entre si?
NOTAS
1 Pinto, Paulo F. & Júdice, Norimar. Para acabar de vez com Tordesilhas. Lisboa: Colibri, 1998.
2 Renato Epifânio. "Resposta a Antonio Pinto Ribeiro".
3 "Poema Verdade". In: Drummond de Andrade, C. Corpo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.
4 Pedrosa, Inês. Fazes-me falta. São Paulo: Planeta, 2003.
5 Vídeo youtube – Comercial Vodacom Moçambique.
Cf. Conceito de Lusofonia, de Maria Sousa Galito.