De facto, se suprimirmos a expressão «uma vez» da frase «Uma vez deferido o processo», o sentido do enunciado parece não sofrer alterações. No entanto, pela presença dessa expressão introdutória, depreende-se que a frase «Uma vez deferido o processo» não é uma frase isolada. Ela faz, decerto, parte de um texto/discurso (mesmo que breve) que envolve um determinado processo (judicial, financeiro, académico, etc.) cujo deferimento é determinante, o que implica uma sequência textual.
Ora, a coesão (assim como a coerência) do texto é assegurada pelas expressões/formas linguísticas que determinam as relações lógicas entre as situações, expressões/formas linguísticas estas que são «processos de sequencialização que exprimem vários tipos de dependência semântica das frases que ocorrem na superfície textual» (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 91). Por isso, «todos os processos de sequencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação linguística significativa entre os elementos que ocorrem na superfície textual podem ser encarados como instrumentos de coesão» (idem, p. 89). Trata-se, portanto, de processos de conexão interfrásica.
É essa a razão pela qual se designam tais expressões/formas linguísticas — que contribuem para a coesão e a coerência de um texto — como articuladores do discurso ou conetores discursivos, que, segundo o Dicionário Terminológico, «são uma classe de marcadores discursivos, que ligam um enunciado a outro enunciado ou uma sequência de enunciados a outra sequência, estabelecendo uma relação semântica e pragmática entre os membros da cadeia discursiva, tanto na sua realização oral como na sua realização escrita. Morfologicamente, são unidades linguísticas invariáveis, pertencem a heterogéneas categorias gramaticais — como interjeições, advérbios ou conjunções —, têm a mesma distribuição da classe de palavras a que pertencem e contribuem de modo relevante para a coerência textual, orientando o recetor na interpretação dos enunciados, na construção das inferências, no desenvolvimento dos argumentos e dos contra-argumentos».
Relativamente à categoria gramatical de «uma vez», importa salientar que não encontrámos nenhum registo da sua classificação nas gramáticas portuguesas consultadas. Contudo, acerca da expressão «une fois», usada, como «uma vez», em orações participiais do francês, o gramático francês Maurice Grevisse, em Le Bon Usage (1969), inclui a expressão «une fois» como uma das formas (a par de aussitôt e sitôt) que «seguidas de um atributo ou de um complemento, com elipse do verbo ser ou estar» marcam «a posterioridade da ação principal [nos casos em que] a oração temporal não é introduzida por uma conjunção»1. Por isso, e tendo em conta o facto de que «uma vez» seguido de particípio introduz uma oração reduzida participial com valor temporal («uma vez» = «logo que»), parece-nos que poderemos classificá-la como uma locução adverbial temporal.
1 Tradução feita a partir da seguinte citação: «La proposition temporelle n´est pas toujours introduite par une conjonction. [...] La posteriorié de l´action principale est marquée parfois au moyen de aussitôt, sitôt, une fois, suivis d´un attribut ou d´un complément, avec l´ellipse du verbe être: Une fois parti, je ne reviendrai pas.» (Maurice Grevisse, ob. cit., p. 1083).