1. Se quisermos aplicar o critério da vernacularidade na seleção do léxico, veremos que há limitações, porque o português, à semelhança das outras línguas, tem assimilado empréstimos estrangeiros desde que se diferenciou do latim. Mesmo perante uma palavra de origem latina patrimonial e um empréstimo cognato de outra língua românica, isto é, também resultante da evolução do latim, não se deve preterir o empréstimo a favor da palavra patrimonial, até porque, frequentemente, os membros desse par vocabular divergiram semanticamente e têm contextos próprios de uso, incompatíveis com a substituição do empréstimo pelo vernáculo.
2. Em relação aos três casos apresentados pelo consulente, há a dizer que apenas um configura um par de cognatos, roca/rocha. Assim:
2.1. Roca, atestada, pelo menos, desde os princípios do século XI (Dicionário Houaiss, com base em José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa) e praticamente igual ao castelhano roca, provém do latim vulgar *rŏcca, que terá provavelmente origem pré-latina (idem). A palavra rocha, atestada desde meados do século XII (idem, baseado em Machado, op. cit.), surge como adaptação do francês roche, que é forma divergente do mesmo étimo de roca (idem). Tendo em conta que, por um lado, segundo José Pedro Machado (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa), rocha é um «galicismo antiquíssimo», documentado desde o século XII (pelo menos, como apelido), e que, por outro, rocha tem hoje maior uso que roca (= «rocha»), não me parece avisado, depois de tantos séculos, condenar agora o primeiro vocábulo e defender como legítimo o segundo. Se rocha fosse um aportuguesamento com apenas dez anos, ainda faria sentido rejeitá-lo; mas depois de uma naturalização de quase novecentos anos (tal como a da palavra rua, que tem também origem francesa), a palavra é tão portuguesa como qualquer arabismo ou germanismo medievais.
2.2. Não é certo que tranqueira e trincheira tenham o mesmo étimo: tranqueira (atestada desde o século XVI, segundo o Houaiss) exibe o radical tranc-, o mesmo de tranca («"voz patrimonial del castellano y del portugués", diz Corominas, acrescentando parecer-lhe pré-romana, prov. céltica, conexa com o gaulês tarinca, "espeto, travão, barrote", gaélico tarrang, "cravilha, tarugo"); trincheira apareceu em português, pelo menos, no século XIII (idem), como adaptação do empréstimo francês tranchée, ou, melhor, trenchiee (forma medieval), «cortada, separada», particípio passado da forma medieval de trancher, trenchier, «cortar separando», do latim vulgar *trincare, por sua vez proveniente de truncare, «cortar, desbastar» (ver o inglês trench, que tem a mesma origem no Online Etymology). Embora tranqueira, «paliçada; fortificação de estacada», possa ser usado como sinónimo de trincheira, e apesar de ser tentador relacionar o tranc- ibérico com o trunc- latino, mesmo assim, não vejo a necessidade de recuar ao proto-indo-europeu e rejeitar trincheira porque apresenta um radical que não foi transmitido diretamente do latim ao português.
2.3. Etimologicamente, não há relação entre sobressalto e surpresa: o primeiro vocábulo obteve-se por prefixação (sobre- + saltar); quanto a surpresa, é aportuguesamento atestado desde finais do século XVIII, do francês surprise, «imposto extraordinário» (1160) e «ato de supreender; fato que suscita maravilha» (1549), feminino substantivado de surpris, particípio passado de surprendre, «surpreender», com origem no latim praehendo, prehendo ou prendo, is, di, sum, ĕre, «tomar, agarrar; segurar, prender; apanhar em flagrante, surpreender; atingir, chegar a; apreender, compreender».
Do ponto de vista semântico diacrónico, é certo que sobressalto ocorre nos finais da Idade Média em contextos onde hoje seria de empregar surpresa (exemplo retirado do Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira):
«Mas quando ella o viu, tamanho foi o seu prazer que não pode falar, antes chorando caiu esmorecida no chão do grande prazer que de sobressalto lhe veo, por que diz o estoreador que não soube que vinha atee que o viu.»
Contudo, na atualidade, não vejo vantagem em proscrever surpresa para favorecer sobressalto, até porque se trata de palavras que não se substituem mutuamente: diz-se «trazer em sobressalto», e não «trazer em surpresa»; usa-se «fazer uma surpresa», e não «fazer um sobressalto». Em suma, em português moderno, sobressalto aplica-se sempre a uma experiência desagradável, enquanto surpresa se refere a uma situação inesperada de modo positivo («uma agradável surpresa») ou negativo («atacaram a cidade de surpresa»). Ambas são palavras úteis, expressivas, que não se encontram em redundância uma com a outra.