Aquilo que nos pede a consulente não pode ser respondido em meia dúzia de linhas, nem tão-pouco cabe aos consultores do Ciberdúvidas realizar este tipo de análise, que, como se calcula, exige um trabalho de fundo e um estudo aprofundado da obra em questão, e de várias obras de referência, coisa que não se faz de um dia para o outro. Poderemos apenas dar algumas luzes sobre o assunto e indicar bibliografia a consultar.
Consideremos, primeiramente, o texto:
«Vos estis sal terrae (Mateus, 5:13)
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm o ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou porque é que o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda Mal. (...) Isto suposto, quero hoje, à imitação de S. António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto, que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: Senhora do mar; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.»1
Neste pequeno excerto, é visível a analogia ao texto bíblico, cujo conteúdo citado é desenvolvido ao longo do texto com uma alteração: Apóstolos (texto bíblico) — Pregadores (sermão) são «o sal da terra».
Relativamente à simetria, note-se a repetição e enumeração de palavras, expressões, terminações, etc. A simetria pode ser lexical, sintáctica, morfológica, semântica e rítmica. Por exemplo, no primeiro parágrafo, observe-se a repetição da disjunção ou, da expressão «o sal da tera, o sal não salga». A repetição de uma expressão, palavra, ou mesmo de um radical, como em «os pregadores não pregam», confere ao texto uma simetria morfológica, por se repetir um radical, sintáctica, por serem enumeradas expressões de construção idêntica, semântica, por se reforçar um mesmo significado, e rítmica, funcionando como um eco.
Por fim, também neste pequeno excerto nos deparamos com um silogismo, apesar de não ter uma estrutura convencional (se A = B, e C = A, logo, B = C). Segundo o aristotelismo, um silogismo consiste no raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas premissas, das quais, por inferência, se obtém uma terceira: «o efeito do sal é impedir a corrupção», «mas quando a terra se vê tão corrupta como a nossa», «ou o sal não salga ou a terra não se deixa salgar».
Compreenda que o espaço que temos não nos permite uma abordagem mais detalhada do que esta, esperamos, contudo, tê-la elucidado quanto ao tipo de análise que deve fazer a partir daqui. Pode ainda consultar as seguintes obras críticas:
Castro, Aníbal Pinto de, 1973, «O método Português de Pregar» in Retórica e Teorização Literária em Portugal, Coimbra: Centro de Estudos Românicos.
Cidade, Hernâni, 1940, Pe. António Vieira, Estudo Biográfico e Crítico, Lisboa: AGC.
Lins, Ivan, 1956, Aspectos do Pe. Antônio Vieira, R. J.: Livraria São José.
Saraiva, Maria Isabel Paula, 1961, «Análise Estilística dum Sermão do Padre António Vieira» in Actas do IX Congresso Internacional de Linguística Românica, Vol. II, Lisboa.
1 Vieira, António, 1608-1697, Sermões Escolhidos, Selecção, introdução e notas por Maria das Graças Moreira de Sá, Lisboa: Ulisseia, p. 73.