DÚVIDAS

Sobre o imperativo do verbo fazer

Sou secretária e na empresa em que trabalho temos um Ato de Fé no qual estão inseridos os valores, a missão e alguns pensamentos do Conselho Diretor da empresa.
Destaco aqui um parágrafo:
«Quando tiveres terminado o teu trabalho faz o do teu irmão, ajudando-o com tal delicadeza e naturalidade que nem mesmo o favorecido repare que estás fazendo mais do que em justiça deves».
A conjugação do verbo fazer não deveria estar no imperativo (Quando tiveres terminado o teu trabalho faças (tu) o do teu irmão)?
Porém, além do «faças» não soar muito bem, deve-se evitar a mistura de tratamentos (2.ª e 3.ª pessoas) o que acontece no texto completo que eu não transcrevi aqui, sem falar que o tu é característico da região sul.
Minha sugestão foi alterar este parágrafo para a 3.ª pessoa ficando: ... que nem mesmo o favorecido repare que está fazendo mais do que em justiça deve.
Foi quando surgiu a dúvida; quem está fazendo mais: você ou o teu irmão?
Seria o caso de acrescentar a palavra você? (... repare que você está fazendo mais do que ...)
Há alguma outra solução?
Deveria ter deixado com estava já que foi retirado de um pensador antigo??
Obrigada.

Resposta

Uso do imperativo

O parágrafo que destaca tem, na verdade, o verbo fazer no imperativo. Recordo que o imperativo do verbo fazer é faz (tu), fazei (vós). Caso seja necessário utilizar, com valor imperativo, outras pessoas do verbo, então recorre-se ao conjuntivo (que eu faça, que tu faças, etc.).

Uso da segunda pessoa

Se a frase fosse analisada do ponto de vista do Português Europeu, nada haveria a dizer (a não ser trocar a perifrástica estás fazendo por estás a fazer…). Efectivamente, creio que o uso da segunda pessoa do singular (tu) é mais comum deste lado do Atlântico, correspondendo, no Brasil, como a consulente refere, a uma característica que identifica algumas zonas.
Todavia, o uso, no mesmo período, de pessoas gramaticais diferentes nada tem de incorrecto de ambos os lados do Atlântico se na frase houver entidades distintas a ser designadas e a servir de sujeito. É o que acontece no parágrafo que cita. Vejamos:

«Quando (tu) tiveres terminado o teu trabalho faz (tu) o do teu irmão, ajudando-o com tal delicadeza e naturalidade que nem mesmo o favorecido (ele) repare que (tu) estás fazendo mais do que em justiça (tu) deves

Todos os verbos que se relacionam com a entidade a quem a mensagem é dirigida (o receptor, ou alocutário) estão na segunda pessoa do singular. Caso se optasse por utilizar a terceira pessoa do singular – forma verbal que acompanha a forma de tratamento você –, verificar-se-ia a necessidade de explicitar o sujeito para desfazer a ambiguidade a que a consulente foi sensível. Reescrevo a frase, tentando aproximar o discurso da norma brasileira. As minhas desculpas se falhar:

Quando tiver terminado seu trabalho faça o de seu irmão, ajudando-o com tal delicadeza e naturalidade que nem mesmo o favorecido repare que você está fazendo mais do que em justiça deve.

Estão em causa duas questões diferentes. Por um lado, o uso da segunda pessoa como forma de discurso directo; por outro lado, o uso de duas pessoas distintas na mesma frase. Se o uso da segunda pessoa no discurso directo é mais comum em Portugal do que no Brasil, já a possibilidade de empregar num mesmo período várias pessoas depende do sentido global da mensagem e do número de entidades que desempenhem a função de sujeito.

Creio que a grande dúvida da consulente terá advindo do facto de não ter identificado a forma verbal faz como imperativo e sim como presente do indicativo.

 

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