DÚVIDAS

Sobre a palavra antiga ferruminação

Prezada equipe do Ciberdúvidas, agradeço-lhe pelas respostas sempre esclarecedoras e por verdadeiramente manter um intercâmbio entre as diferentes variantes da nossa língua portuguesa. Agradeço especialmente ao senhor Pedro Mateus, por sua gentileza em me ter respondido uma questão anterior, ajudou-me muito.

Recebi uma resposta da Academia Brasileira de Letras em que ela fez referência à obra de Duarte Nunes de Leão, Orthografia da Lingoa Portvguesa, de 1576. Quando procurei a referida obra e fui consultá-la, deparei-me com um termo cujo significado não conhecia. Ele está na secção «Tractado dos pontos das clausulas, & de outros que se põem nas palauras, ou oração”. Eis o trecho:

«O VII. he o hyphen, q quer dizer vnião, ou ajuntamẽto. O qual se vsa de duas maneiras: a primeira, quãdo se ajũtão em hũ corpo duas dições differẽtes, ficado feitas hũa soo, como passa-tẽpo, guarda-porta, val-verde, Mont’-agraço & aquellas palauras Latinas, venum-dare, pessum-dare, ab-interstato, & outras muitas. A outra maneira de q a vsamos He, quãdo per caso,ou per erro, se acerta de screuer hũa palaura cõ as syllabas muito separadas hũas das outras, para denotarmos, q se hão de ajũtar em hum corpo, para formar hũa dição, & tirar a duuida em que staria o lector, como aqui: Confira-dona vossa palaura. De maneira que He final de vnião & ajuntamento, & como hũa solda, & serruminação de syllabas.» [Pelo licenciado Duarte Nunez Leão, em ORTHOGRAPHIA DA LINGOA PORTVGVESA; Lisboa, 1570, pp. 77-78.]

Este termo é justamente serruminação, já no final da citação. Gostaria de saber seu significado.

Gostaria também de saber a quantidade de fonemas que tem o vocábulo menina.

Resposta

A equipa do Ciberdúvidas agradece, mais uma vez, as amáveis palavras.

O livro Orthographia da Lingoa Portuguesa (1576), de Duarte Nunes de Leão, encontra-se integralmente disponível, em linha, no sítio da Biblioteca Nacional Digital de Portugal.

Após consulta atenta do documento original, mais concretamente da passagem transcrita pelo consulente sobre o uso do hífen (pp. 77-78), posso concluir o seguinte:

1. Devido às semelhanças evidentes verificadas entre as representações gráficas das letras s e f (característica, aliás, da escrita da época: veja-se, apenas a título de exemplo, a Comedia Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, 1560), o estimado consulente terá, penso, de forma perfeitamente compreensível, trocado, em alguns momentos, uma pela outra: assim, onde se lê, por exemplo, no excerto transcrito pelo consulente, «He final de vnião», parece-me que fará talvez mais sentido ler-se «He sinal de vnião».

2. Deste modo, penso que a mesma observação deverá ser feita relativamente à palavra serruminação (termo que não encontro registado em parte alguma), epicentro da dúvida aqui exposta. Creio, portanto, que se deverá ler ferruminação.

3. Passo a explicar porquê: no excerto em análise, o autor começa por dizer o que significa a palavra hífen, elencando, seguidamente, aquelas que eram, na época, e tendo em conta o conhecimento e a análise do gramático, as duas funções do referido sinal gráfico, isto é, juntar duas palavras diferentes (tornando-as numa só) e rectificar erros casuais, ou motivados por alguma distracção, em que, por exemplo, se separavam, sem querer, as sílabas de uma determinada palavra, correndo-se o risco, devido a essa mesma separação, de induzir o leitor em erro. Neste contexto, o uso do hífen serviria para avisar o receptor do texto de que, na verdade, aquela era uma única palavra, e não duas, como se poderia eventualmente deduzir: «screuer hũa palaura cõ as syllabas muito separadas hũas das outras para denotarmos, q se hão de ajũtar em hum corpo, para formar hũa dição, & tirar a duuida em que staria o lector». Com o objectivo de ilustrar e clarificar esta função do hífen, o autor dá um exemplo: «confia-dona1 [e não «Confira-dona», como transcreve o caro consulente] vossa palaura» (leia-se «confiado na vossa palavra»).

4. No final do excerto, o gramático procura fazer uma síntese — introduzida pela expressão «De maneira que» — dos mais importantes aspectos referidos. Assim, conclui Duarte Nunes de Leão, o hífen é «sinal de vnião & ajuntamento» (referindo-se à definição do sinal gráfico apresentada no início do excerto), é usado «como hũa solda [aderência ou união íntima de duas ou mais peças, formando um só corpo2]» (primeira função do hífen mencionada no excerto) e, finalmente, «ferruminação de syllabas» (segunda função descrita);

5. Ora, de facto, não vislumbro o verbo ferruminar registado em nenhum dos instrumentos de língua portuguesa consultados. No entanto, encontro, no Dicionário de Latim-Português, da Porto Editora, e no Nouveau Dictionnaire Français-Latin (Paris, 1808), de François Noël, o nome latino ferrumen, inis, significando «solda, soldadura, substância para soldar», assim como o verbo ferruminare, significando «soldar»; «souder», «réunir» (fr. «soldar», «reunir»). Por outro lado, verificamos que este mesmo verbo, ferruminare, se mantém, actualmente, na língua italiana, como atesta, por exemplo, o Dicionário de Italiano-Português, da Infopédia, com o significado «soldar».

6. Deste modo, parece-me, pelo exposto, que o vocábulo (substantivo) ferruminação fará todo o sentido no contexto em análise, querendo o autor dizer, com alto grau de probabilidade (em linha até com a utilização anterior da palavra «solda»), «junção/união de sílabas» («ferruminação de syllabas»), «quãdo per caso,ou per erro, se acerta de screuer hũa palaura cõ as syllabas muito separadas hũas das outras, para denotarmos, q se hão de ajũtar em hum corpo, para formar hũa dição [= palavra]».

Quanto à segunda questão levantada pelo consulente, direi, de forma abreviada, que, no vocábulo menina, a quantidade de letras corresponde à quantidade de fonemas (isto é, seis), quer no português europeu [mɨˈninɐ], quer no português do Brasil [miˈninɐ] ou [meˈninɐ].3

1 A apresentação gráfica no texto original é, por aproximação, «confiaυdona»

2 Dicionário Houaiss: repare-se que, de acordo com este dicionário, uma das definições apresentadas para o verbo soldar é, justamente, «unir(-se), formando um todo. Ex.: soldar uma palavra a outra».

3 A transcrição [miˈninɐ] representa a pronúncia brasileira mais corrente em português do Brasil, embora seja também possível [meˈninɐ], em pronúncia pausada, por exemplo, num ditado (comunicação pessoal de Luciano Eduardo de Oliveira). Na variedade brasileira, pode também verificar-se a síncope da vogal da primeira sílaba: [mninɐ] (idem). Do mesmo modo, em português europeu, a síncope do chamado "e mudo" — [ɨ] —, que ocorre em posição átona, é extremamente frequente, pelo que, foneticamente, a palavra passa a contar com cinco segmentos: [mninɐ].

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