É muito importante ter em conta que a língua existe antes da gramática, se entender gramática como um livrinho onde se diz como escrever, ou onde se descreve como o fazer.
Mas gramática não é o manual onde se ditam regras ou se descreve a forma de dizer. A gramática é o conjunto de regras que, mesmo sem o saber, os falantes de uma língua aplicam. Existe uma gramática em qualquer língua que permite que os falantes dessa língua se identifiquem como comunidade. É essa gramática que impede um falante que tenha a língua portuguesa como materna de dizer ou aceitar como adequada a frase «*Nós chovemos.»; ou a sequência de sílabas «pama», que são as mesmas que entram em mapa, que todos aceitamos.
A par desta realidade e desta gramática inquestionável, ou seja, da existência de um conjunto de regras intrínsecas a cada língua, e mesmo a grupos de línguas – como as línguas românicas, por exemplo, que têm um conjunto de regras que permite identificá-las como aparentadas –, há um conjunto de pessoas que se dedicam a estudar este fenómeno e que o abordam segundo metodologias e com objectivos diferentes.
Um gramático normativo vai ter como preocupação principal analisar a norma culta, ou seja, a forma como um determinado grupo social, a elite cultural, fala e escreve.
E vai definir como boas as frases que essa elite produzir, usando como exemplos na sua gramática frase escritas por autores consagrados. Habitualmente, um bom gramático normativo reconhece a existência de outras formas de falar e refere outros níveis de língua, como o familiar, o popular, etc., sem lhes dar relevo.
Por seu lado, um gramático descritivo também nunca perde de vista a norma culta, ou seja, a mesma que os normativos estudam. Mas, para além disso, procura descrever como os falantes do seu tempo realmente falam. Para isso, não procura nos autores consagrados, sobretudo se já viveram e escreveram há muito tempo, os exemplos que apresenta. Não o faz por várias razões, de que enumero duas:
a) por um lado, os escritores consagrados usam a língua como um pintor usa as cores; isto é, usam – e é-lhes reconhecido esse direito – a liberdade poética, ou criatividade artística. Essa liberdade poética permite-nos aceitar, e considerar mesmo excelente, a frase de Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego: «Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?»
b) por outro lado, a língua é um “ser vivente” e, como tal, está em constante mudança. Convém, por isso, perceber como falam os nossos contemporâneos.
A grande diferença entre as duas gramáticas está, afinal, no objectivo: os normativos querem fixar a norma; os descritivos querem registá-la nas suas variações. Usam, por isso, metodologias diferentes: os normativos procuram, para aceitar como boa uma frase, saber se algum escritor de renome a utilizou; os descritivos, tendo em conta a tal gramática que existe para lá dos estudiosos da língua, procuram desenvolver testes que permitam dizer se uma frase pertence à língua portuguesa ou não.
Em ambas as gramáticas, normativas ou descritivas, o ponto de partida é a norma culta, ou língua-padrão. Porém, as descritivas reconhecem a existência de várias “normas” para além da norma padrão – de divulgação nacional e objecto de estudo nas escolas. E admitem como aceitável, numa determinada comunidade com alguma expressividade, um conjunto de construções que caracterizam os falantes dessa mesma comunidade. É o que acontece, por exemplo, com o uso do pronome se, em frases como «(?) Nós vamos-se embora» utilizado pela grande maioria dos falantes de uma dada região do nosso país.
Respondendo à sua pergunta, aquilo que devemos usar é a Gramática da Língua Portuguesa. Aquela que existe para lá e apesar dos gramáticos. É claro que o discurso, ou seja, a forma como damos corpo às palavras e frases da nossa língua, se deve adequar ao meio ou contexto. Mas isso não invalida que – a menos que esteja a escrever um texto para falantes que têm um dialecto característico – deva usar sempre a norma-padrão, que ambos os tipos de gramática estudam prioritariamente.
Quanto a saber onde pode utilizar a frase «(...) pesa três grama (...)», digo-lhe que só a poderá usar, de forma aceitável, se ela fizer parte das características específicas de uma comunidade de falantes representativa e dentro dessa comunidade. Face à gramática da língua portuguesa, a regra da concordância exige o plural de um nome seguido de um numeral superior a um. Por isso deve dizer-se «(...) pesa três gramas (...)»
Quando refere a «polémica sobre a quase "aculteração" da gramática descritiva», não sei se pretendia dizer adulteração ou aculturação. Creio, no entanto, que a minha reflexão o esclarecerá.
Não sei se percebi bem a última questão que coloca sobre «a linguagem normativa enquanto meio preferencial de comunicação para uma potencial sociedade totalitarista», porque não sei se se está a referir à língua portuguesa, ou à comunicação a nível planetário. Posso apenas dizer-lhe que foi o grupo social dominante que, ao longo dos séculos, moldou a norma de hoje em qualquer língua. Se a sua pergunta se refere à necessidade de um instrumento de comunicação que permita um entendimento planetário nesta aldeia global, recordo que ao longo da história houve várias línguas francas que desempenharam esse papel e que foram sendo ditadas pelos grupos economicamente dominantes. Como hoje.