DÚVIDAS

Porquê vendem-se e porquê vende-se

Nas várias respostas em que o Ciberdúvidas se ocupou com a opção entre «vende-se» e «vendem-se» («bolotas», p. ex.), não encontrei qualquer tentativa de justificar uma ou outra opção, nem, pelo menos, de explicar por que motivo os gramáticos mais antigos ou mais conservadores criticavam tão veementemente o uso do verbo no singular. O Ciberdúvidas limita-se a registar as duas ocorrências, esclarecendo que a forma com o verbo no singular corresponde a uma interpretação do «se» como sujeito indefinido e que a forma com o verbo no plural decorre da interpretação do «se» como partícula apassivante. Ora, julgo que os leitores pretendiam mais do que isso. Pretendiam saber qual das duas formas é mais vernácula, qual delas obedece melhor ao ideal - sem dúvida, muitíssimo discutível, para não dizer mais - do «português correcto». Não sugiro que os colaboradores do Ciberdúvidas adiram a uma concepção normativa da gramática, não sugiro sequer que se adopte o conceito de «português correcto», mas, neste como noutros temas que têm aparecido, só é possível responder às perguntas feitas se houver uma intenção (ainda que limitada) de procura desse vernáculo.

Na opção entre o «se» apassivante e o «se» sujeito indefinido, caberia, pois, ponderar a origem desta palavrinha e a sua inserção no conjunto dos pronomes, a que originariamente pertencia. Este «se» era, em latim, um pronome, e assim começou por ser em português. Um pronome com duas características relevantes: reflexo e, também por isso, oblíquo. Assim, o «se», à partida, nunca desempenharia a função de sujeito (para isso temos os pronomes rectos). E ainda menos poderia ser um pronome indefinido, visto que os pronomes reflexos têm o mesmo referente que o sujeito da oração. O uso do «se», nestes casos, surgiu necessariamente como alternativa à voz passiva: na verdade, os pronomes reflexos e a voz passiva têm em comum fazerem a acção recair sobre o sujeito. Portanto, numa construção vernácula, o «se» é, com certeza, uma partícula apassivante.

Hoje é claro, porém, que o «se» tem muitas vezes o valor de pronome indefinido. Como a forma vernácula era um modo cómodo de omitir a indicação do agente, ter-se-á estendido a verbos que não a permitiriam, os verbos intransitivos (e, portanto, sem voz passiva). Daí, já com a natureza de pronome indefinido, veio «contaminar» os verbos transitivos, de maneira que, nos nossos dias, tanto se admite a forma «vendem-se bolotas», quanto a forma «vende-se bolotas». A primeira, ainda assim, tem melhores pergaminhos....

Ou estarei demasiado longe da razão?

Resposta


Penso que, para se resolver este caso de dúvida, basta apresentar e comentar estes dois grupos de exemplos:

1. – Aqui está-se bem.

- Vende-se esta casa.

2. – Aqui compram-se livros usados.

- Vendem-se estas casas.

De acordo com os livros que tratam do estudo da própria língua, nas frases do grupo 1., o sujeito está indeterminado: há alguém que se encontra bem (até rima!) em determinado sítio – aqui. Mas não se diz quem é. Na segunda frase, temos o mesmo caso: há alguém que vende esta casa, mas não se diz quem é. O sujeito está indeterminado pela partícula indeterminante do sujeito – se.

Vejamos agora as frases do grupo 2.

Ambas elas estão na voz passiva que, neste caso, não se forma, não se constrói com o verbo ser, mas com a palavra (ou partícula) apassivante (ou apassivadora). Isto é:

a) Aqui compram-se livros usados. =

= Aqui são comprados livros usados, em que o sujeito é livros usados.

b) Vendem-se estas casas = Estas casas são vendidas, em que o sujeito é estas casas.

Como se trata de voz passiva, não devemos dizer vende-se mas vendem-se estas casas, fica mais vincada a ideia de pluralidade, porque temos dois plurais: um está em vendem-se; outro, em casas.

É verdade que, actualmente, há muita gente que prefere "compra-se livros" e "vende-se casas", mas esta construção que já lemos aqui e acolá em escritores do Renascimento tem sido bastante atacada, e com razão, como já vimos porquê.

 

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