DÚVIDAS

Outra vez a concordância com expressão numérica

Antes de mais, cumprimento-os pelo excelente serviço que prestam aos falantes da língua portuguesa.

Seguidamente, pergunto-vos se, nas expressões abaixo, alguma está incorrecta, ou se uma é mais correcta do que a outra:

1 — «Cinquenta anos não é nada para mim.»

2 — «Cinquenta anos não são nada para mim.»

Julgo que ambas estarão correctas, mas, ainda assim, gostaria da V. douta opinião, dado que já estive envolvido numa argumentação em que uma das partes defendia que a hipótese 1 estaria incorrecta porque o verbo teria de estar em concordância com o número de anos. Ora, a meu ver, isto não é estanque, na medida em que «Cinquenta anos» pode perfeitamente assumir o carácter de «isso», como no diálogo seguinte: «— Cinquenta anos? O que é isso para si? — Cinquenta anos, na verdade, não é nada para mim.»

Fico a aguardar o V. esclarecimento.

Resposta

A frase 1 — «Cinquenta anos não é nada para mim» — está correcta, segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, que fizeram regra para os casos particulares de concordância do sujeito com expressão numérica com o verbo ser: «quando o sujeito é constituído de uma expressão numérica que se considera em sua totalidade, o verbo ser fica no singular» (Celso Cunha e Lindley Cintra,  Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, p. 504), fundamentando com os seguintes exemplos:

«Oito anos sempre é alguma coisa.» (Carlos Drummond de Andrade, CA, 146)
«– Dez contos?! Não será demais?» (Almada Negreiros, NG, 80)

No entanto, segundo João Peres e Telmo Móia (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1995), as questões da concordância não são lineares e, por isso, colocam-nas entre os casos das áreas críticas da língua portuguesa. Porque, apesar de haver regras para a concordância literal  (ou gramatical, ou morfológica) entre duas expressões linguísticas — que «consiste numa coincidência de propriedades morfológicas dessas expressões» (Peres e Móia, ob. cit. p. 449) — a realidade mostra «que esta concordância nem sempre é realizada pelos falantes, sendo frequentes as excepções e até os desvios, com graus de aceitação bastante variáveis» (idem).  Acrescentam, ainda, que «Rodrigues Lapa aponta três motivos frequentes para situações de ausência de concordância (literal): um, que consiste em concordar as palavras não segundo a letra mas segundo a ideia; outro, segundo o qual a concordância varia conforme a posição dos termos no discurso; e um terceiro que traduz o propósito de fazer a concordância com o termo que mais interessa acentuar ou valorizar» (idem). Os dois linguistas acentuam, assim, «que a ausência de concordância literal nem sempre é fonte de agramaticalidade», uma vez que «a concordância é uma área da sintaxe da língua portuguesa onde o falante tem muitas vezes a possibilidade de optar livremente entre formas distintas» — que se dizem estarem em variação livre — para uma mesma construção.

Ora, a frase que nos apresenta aceita, também, para além da «chamada concordância lógica» proposta de Cunha e Cintra — «processo gramatical que faz prevalecer o conteúdo semântico das expressões sobre a sua forma morfológica, [que] é bastante actuante no português actual» — a concordância literal  (ou gramatical, ou morfológica), em que há concordância entre o sujeito plural e o respectivo predicado, ficando este na forma plural.

Assim sendo, duas estruturas são possíveis para tal frase:

a) se tivermos em conta a concordância lógica (em que o sujeito é encarado como uma totalidade), o verbo terá a forma singular:

      «Cinquenta anos não é nada para mim.»

b) se optarmos pela concordância literal (gramatical ou morfológica), em que a expressão plural do sujeito prevalece, o verbo figurará no plural:

      «Cinquenta anos não são nada para mim.»

 

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