As palavras mais simples, mais vulgares e até mesmo as grosseiras ganham novos valores num texto literário, que tem a arte de as transformar, chegando mesmo a conferir-lhe sentidos de extrema beleza.
É o caso desta expressão «porrada de cego», que, descontextualizada, nos atinge de uma forma desagradável, passando a ideia de violência e de agressividade pela crueza da oralidade do calão.
À primeira vista, numa leitura rápida, tal expressão parece desajustada a um texto poético, onde tudo parece conjugar-se para a construção de um efeito estético perfeito. Neste poema, esta expressão parece um desvio ao conceito poético, mas essa ideia desfaz-se, quando se faz uma leitura mais atenta, quando se procura descodificar os sentidos criados com as palavras escolhidas pelo sujeito poético. Aparentemente rudes, mas essa rudeza pretende, precisamente, transparecer a violência e a intensidade das sensações que o Amor provocou no sujeito poético, que se assume como vencido pelo Amor.
Se analisarmos o mote, a partir do 1.º verso, apercebemo-nos de que o sujeito poético nos coloca perante um jogo/uma luta entre o Amor e o sujeito poético (o “eu”), onde ora caracteriza um, ora o outro. Assim, inicia o poema, falando de si como objecto do Amor, uma vez que o eu se revela como vencido e fraco perante a força do Amor («Venceu-me o Amor, não nego / tem mais força qu’eu assaz»). Nos dois versos seguintes, refere-se ao Amor, caracterizando-o metaforicamente como «cego e rapaz». Ora, tanto cego como rapaz são usados em sentido figurado, com o sentido de que o amor é cego, porque não vê, não tem a capacidade de discernir, não usa a razão. E é «rapaz», porque é jovem, é insensato, imprudente, rebelde, ousado, forte e fogoso… Por isso, o Amor, como jovem que é, dá ao sujeito poético «porrada de cego». Penso que esta expressão pode ser analisada como uma queixa do eu que se sente/que se assume como vítima de todo o tipo de sofrimentos que o Amor lhe provoca. Ao dizer isto, o eu evidencia o poder e a força do Amor sobre si. «Dá-me porrada de cego», assim, significa «violenta-me a todos os níveis, agride-me, faz-me sofrer», assumindo-se o eu como um joguete nas mãos do Amor, sem qualquer capacidade para se defender.
No entanto, o sujeito não cria a ideia disfórica do Amor, porque parece brincar com o jogo/a luta entre o eu e o Amor. Assume-se como vítima do Amor, mas não parece ressentido, desesperado ou magoado. Pode até inferir-se, pelo tom leve e pela oralidade que imprime, que quer mostrar (ou até ostentar) que foi abatido pelo Amor, que ama e que se orgulha disso.
Penso que não é desajustado acrescentar esta citação sobre a singularidade do texto literário (itálico do original a negro): «A literatura tem um sistema seu de signos e de regras para a sintaxe de tais signos, sistema que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios. […] O texto literário é sempre codificado pluralmente: é codificado numa determinada língua natural, de acordo com as normas que regulam esse sistema semiótico, e é codificado em conformidade com outro sistema semiótico, com outros códigos actuantes na cultura da colectividade em que se integra o seu autor/emissor: códigos métricos, códigos estilísticos, códigos retóricos, códigos ideológicos, etc.
Esta plurissignificação gera um texto de informação altamente concentrada e quanto mais complexa for a estruturação de um texto, em função dos códigos que se intersectam, se combinam, se interinfluenciam na sua organização, tanto menor será a predizibilidade da sua informação e, por conseguinte, tanto mais rica esta se revelará. Assim, um texto literário deve ser entendido como um fenómeno polissistémico que resulta da intersecção de múltiplas estruturas e pertence contemporaneamente a todas, “jogando” com a riqueza de significados que nelas se apresentam. [a negro no original]» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1983, pp. 95-96).
Cf. «Vou encher tua boca de porrada»