As duas frases estão correctas.
Antes da abordagem dos diferentes valores das formas verbais de passado em português, é importante assinalar que a referência temporal se realiza, basicamente, de duas formas:1
1 – tendo como eixo o momento da enunciação [o instante da interacção verbal], fixo e implícito no discurso;
2 – tendo como ponto de referência um momento não coincidente com o da enunciação e, por isso, móvel (deslocável na cronologia) e explicitado no discurso.
1 – No que diz respeito à primeira modalidade de cálculo de referência temporal, há a referir que este momento está integrado no adverbial hoje e coincide com o agora.
Vamos aos exemplos, colocando em jogo o pretérito perfeito simples, o pretérito perfeito composto e o pretérito imperfeito.
a) Fui hoje a um recital de poesia.
b) Hoje ia a um recital de poesia…
c) Casava-me já hoje contigo.
d) Hoje tenho subido e descido estas escadas como em dia nenhum, livra!
e) Ontem fui a um recital de poesia.
f) Ontem ia a um recital de poesia (mas o carro avariou no caminho).
g) Casava-me ontem com ele (mas o tipo deixou-me plantada no altar).
h) * Ontem tenho subido e descido estas escadas...
i) Fui agora ao bar e vi lá o Pedro.
j) Agora tomava um cafezinho...
Vemos que o pretérito perfeito simples, quer em a) quer em e), referencia um momento anterior ao da enunciação, independentemente do advérbio seleccionado.
Porém, o mesmo já não se passa com o imperfeito: em b) o pretérito imperfeito, que co-ocorre com hoje, não tem por função referenciar o passado, mas marcar o enunciado modalmente – facto mais fortemente evidenciado no exemplo c). No entanto, se o pretérito imperfeito for acompanhado do adverbial ontem [exemplos f) e g)], temos a expressão de um evento que esteve na iminência de se realizar, mas que não se realizou, efectivamente.
No que ao pretérito perfeito composto diz respeito [exemplo d)], temos uma acção que é iniciada num momento anterior ao momento de fala mas com incursão neste último. Para além disso, está a ser expresso um valor aspectual claro: subir e descer não são eventos que ocorrem uma vez, mas várias, e, portanto, o pretérito perfeito composto é responsável pela presença do valor aspectual de iteração. O que h) prova é que, apesar da classificação pretérito, o pretérito perfeito composto não situa a acção integral e exclusivamente no passado, e daí a impossibilidade de ocorrência com o advérbio ontem.
Finalmente, o pretérito perfeito em i) designa uma acção passada contígua ao momento de enunciação, e j) tem um valor equivalente ao de c).
2– A referência temporal pode, também, como disse acima, corresponder a um ponto de radicação distinto do momento de enunciação, explicitável por diferentes tipos de adverbiais:
Naquele tempo...
Nesse dia/tempo...
Na véspera...
Na administração Clinton...
Quando Jesus andava pelo mundo...
Vamos novamente aos exemplos:
k) Os romanos frequentavam as termas.
l) Os turistas frequentaram as termas.
m) Os turistas já tinham frequentado as termas quando as instalações foram inundadas.
Em k), o pretérito imperfeito designa uma acção habitual e, por isso, caracterizadora de uma civilização.
Em l), o pretérito perfeito exprime um facto acabado, inserido num quadro de temporalidade passada ou ausente.
Em m), o pretérito mais-que-perfeito exprime um facto acabado/passado, anterior a outro também já consumado/passado.
Podemos chegar a, pelo menos, três conclusões gerais:
• em português, a relação formas simples-formas compostas com os valores aspectuais de acabado-inacabado não é verificável;
• as correspondências de formas e designações verbais entre línguas (românicas) nunca pode ser feita automaticamente: não é possível fazer uma correspondência entre o “passé composé” francês e o pretérito perfeito composto em português, por exemplo;
• a selecção de uma forma verbal, para além da referenciação temporal, pode efectivamente atender a diversos factores, como sejam a modalização, a factualidade, os modos de enunciação (onde se insere a questão dos dois eixos de cálculo temporal), a correspondência anafórica com outros tempos verbais no enunciado, o género discursivo, etc.
Matéria muitíssimo interessante, portanto, se me permite a opinião.