DÚVIDAS

O determinante todo: concordância com substantivos coordenados

O treinador José Mourinho afirmou: «Sou o José Mourinho com todas as qualidades e defeitos.» Esta frase está correcta? A verdade é que foi reproduzida em todos os jornais sem edição, por isso fico na dúvida. Parece-me que o determinante indefinido todas se refere tanto às «qualidades» como aos «defeitos». Ora, estando no feminino, não haverá aqui um problema de concordância? Não seria preferível escrever «todos os defeitos e qualidades» ou «todas as qualidades e todos os defeitos»? Por outro lado, parece-me que escrevendo desta maneira se altera bastante o que o treinador português afirmou. Não o sentido, é certo, mas de algum modo o ritmo, a entoação da frase.

Eu não sei se já responderam a questões similares a esta, mas eu tenho muitas dúvidas deste género quando estou a escrever e agradeceria que me ajudassem a ultrapassá-las.

Resposta

A estrutura que lhe causa dúvidas, «com todas as qualidades e defeitos», ainda que comum, apresenta, à luz da norma, um desvio que se prende com o uso da coordenação representada pela conjunção e. As regras da coordenação preconizam que só elementos de estrutura idêntica ou equivalente se podem coordenar. Por essa razão, a interpretação que faço da estrutura em apreço é a seguinte: estamos perante dois grupos preposicionais, havendo, no segundo, elipse da preposição e do indefinido: «Com todas as qualidades e [com todos os] defeitos.» Habitualmente, este tipo de elisão faz-se sem quaisquer desvios. Porém, sempre que os nomes a coordenar são de género diferente ou estão em número distinto, aconselha-se a repetição dos determinantes (que apresentam marcas de género ou de número distintas) e, mesmo, em alguns casos, da preposição. Na frase em análise, e num discurso formal, o ideal seria registar «com todas as qualidades e todos os defeitos», podendo ficar elidida apenas a preposição, embora haja quem defenda a sua repetição: «Com todas as qualidades e com todos os defeitos.»

No entanto, a frase em apreço é a reprodução de um texto oral, no qual o filtro, digamos assim, da norma é mais flexível, sendo aceitável a forma como o texto ocorreu. Quanto ao facto de os jornais divulgarem a frase, se o objectivo era veicular o texto de Mourinho ipsis verbis, o tipo de desvio que ocorre não justifica a intervenção dos jornalistas, até porque, como refere, ao fazer a edição, alterar-se-ia a ideia de ritmo e de oralidade.

A interpretação que o consulente faz é distinta da que acabo de expor, mas é igualmente lícita. Do seu ponto de vista, não há elipse, e o determinante todas condiciona, ou abrange, os dois nomes, devendo, por isso, estar no masculino, dado haver um nome masculino. Essa é a regra geral da concordância: sempre que há diversos nomes e um é masculino, os elementos que veiculam as marcas de género devem estar no masculino. Há, todavia, algumas excepções, e, face a essas excepções, há, neste exemplo, uma especificidade que não é contemplada na maioria das gramáticas. Habitualmente, fala-se deste tipo de concordância entre nomes e adjectivos, ou verbos e nomes, e não entre determinantes e nomes, pois, em princípio, cada determinante associa-se apenas a um nome... Vejamos um exemplo de fuga à concordância canónica:

1. «Foram referidas as suas qualidades e os seus defeitos.»

O predicado de 1 tem um sujeito passivo, complexo e posposto: «as suas qualidades e os seus defeitos». Como o verbo está na passiva, o adjectivo verbal deveria estar no masculino, uma vez que um dos nomes do sujeito complexo é masculino. Nestes casos, porém, prevêem-se soluções de concordância alternativas, podendo a concordância ser feita com o nome mais próximo, como é o caso em 1. Este tipo de concordância é comum quando os elementos a concordar, digamos assim, vêm pospostos.

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