Para compreendermos os contextos em que o pronome, ou partícula, -se pode ocorrer, analisemos um pequeno corpus:
(1) «Estes livros só nas livrarias se vendem.»
(2) «O trabalho fez-se em pouco tempo.»
(3) «Fala-se muito e faz-se pouco.»
(4) «O João retirou-se.»
(5) «O João viu-se ao espelho.»
(6) «Os dois amigos abraçaram-se.»
(7) «Desencadeou-se uma tempestade.»
(8) «O frigorífico estragou-se.»
Nos exemplos (1) e (2) o -se que está presente é, habitualmente, classificado como partícula apassivante, dado que os verbos podem ter uma forma passiva:
(9) Estes livros só nas livrarias são vendidos.
(10) O trabalho foi feito em pouco tempo.
Em (3) estamos perante o pronome indefinido, e a frase equivale a:
(11) Alguém/As pessoas fala/falam muito e faz/fazem pouco.
Os exemplos (4) e (5) ilustram o uso de se como pronome reflexo, e (6) representa uma realidade em que o pronome é recíproco, pois cada um dos amigos não se abraça a si mesmo, mas ao outro. Por seu lado, os exemplos (7) e (8) correspondem a situações em que o verbo é pronominal, sem que haja, de forma clara, uma função para o clítico.
Do exposto podemos concluir que há verbos intrinsecamente pronominais e verbos aos quais pode ser associado, em determinados contextos, um pronome.
Situemos no segundo caso os dois primeiros exemplos. Trata-se de verbos transitivos directos, que admitem, por isso, uma construção passiva, aqui conseguida através da partícula se. Creio poder dizer-se, como a consulente refere, que todo o verbo transitivo directo pode ser construído com se. Mas não se trata de uma conjugação reflexa e sim de uma conjugação passiva.
Analisemos agora a frase que submete à nossa apreciação.
«O cultivo do ópio voltou a disparar-se.»
O verbo disparar é, nesta frase, intransitivo, significando aumentar bruscamente... Por essa razão, o -se não pode ser considerado partícula apassivante. Também não é um pronome indefinido, já que a frase tem o sujeito expresso: «O cultivo do ópio». Não pode ser reflexo nem recíproco, dado que, para o ser, o sujeito deveria ser animado. Além disso, o verbo disparar não prevê qualquer tipo de conjugação pronominal.
Perante o exposto, conclui-se que não há, do ponto de vista das normas gerais da língua portuguesa, qualquer razão para o uso da conjugação pronominal na frase em apreço. Isso não invalida que, em algumas regiões, este tipo de construção possa existir. Mas, nesse caso, o seu uso tem de ser comparado com outras situações idênticas da mesma região para se encontrar um paradigma que permita caracterizar o uso como dialectal.
Esclarecida a inexistência de uma origem ratificada pela gramática que explique esta construção, podemos, talvez, tentar perceber qual o esquema mental que conduziu à produção da frase em apreço. Separemos, para isso, os dois constituintes que a compõem:
Sujeito – «O cultivo do ópio»
Predicado – «voltou a disparar-se»
O predicado permite-nos ver que estamos perante um processo que se repete, que tem altos e baixos, períodos de maior ebulição e períodos mais calmos. Este dinamismo veiculado pelo predicado tem como sujeito uma entidade passiva: O cultivo do ópio. Acontece que o núcleo da expressão que serve de sujeito é um nome, ou substantivo, que tem o mesmo radical do verbo cultivar, verbo transitivo. O cultivo do ópio é feito por alguém, não acontece sozinho. Da mesma forma que em (1) os livros são uma entidade passiva que alguém vende, aqui o cultivo do ópio é uma entidade passiva manipulada por alguém. Talvez seja esta ideia de passividade que esteja subjacente à pronominalização do verbo disparar.