DÚVIDAS

«E entrou por um perna de pinto e saiu por uma perna de pato»

Relendo a obra Menino de Engenho, de José Lins do Rego, deparei com a expressão «Entrar por uma perna de pinto e sair por uma perna de pato». Apesar de o contexto ser um guia importante para a compreensão leitora, tenho dificuldade de saber seu sentido idiomático. Poderiam os senhores me dar uma luz?

«As suas histórias para mim valiam tudo. Ela também sabia escolher o seu auditório. Não gostava de contar para o primo Silvino, porque ele se punha a tagarelar no meio das narrativas. Eu ficava calado, quieto, diante dela. Para este seu ouvinte a velha Totonha não conhecia cansaço. Repetia, contava mais uma, entrava por uma perna de pinto e saía por uma perna de pato, sempre com aquele seu sorriso de avó de gravura dos livros de história. E as suas lendas eram suas, ninguém sabia contar como ela. Havia uma nota pessoal nas modulações de sua voz e uma expressão de humanidade nos reis e nas rainhas dos seus contos. O seu "Pequeno Polegar" era diferente. A sua avó que engordava os meninos para comer era mais cruel que a das histórias que outros contavam.» («Menino de Engenho», 2016, Capítulo 20, p. 70)

Resposta

   A expressão é usada nos contos infantis, normalmente no final, como uma espécie de lengalenga de remate lúdico: «(...) E entrou por um perna de pato e saiu por uma perna de pinto, mandou El-Rei Meu Senhor, que me contassem cinco... », Francisco Ildefonso (Chico Preto), «Joãozinho e Maria», Praia de Areia Preta. Natal, in CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1986. pp. 163-5.

   No entanto, caiu em desuso, pelo que é difícil atualmente ouvi-la ou lê-la nos contos ou histórias infantis.

   Dá-se o nome de parlendas a uma declamação poética para crianças, acompanhada por música (Dicionário Houaiss). Estas criações anónimas fazem, muitas vezes, parte do folclore brasileiro e passam de geração em geração, veículos de uma cultura oral, popular. São versos simples, divertidos, recitados em brincadeiras de crianças cuja finalidade é entreter e distrair, mas também ensinar. Possuem uma rima fácil, ritmada e repetitiva e, por isso, são populares entre as crianças, contribuindo para o desenvolvimento da memorização, da comunicação, da socialização e do raciocínio lógico. São usadas em diversas situações, tais como, brincadeiras de roda, jogos, histórias ou apenas por diversão.

   Também se chamam parlandas, parlenga, perlendas ou perlengas. 

   Lengalengas é ainda outra maneira de dizer a mesma coisa, como atesta o Dicionário Infopédia: texto transmitido de geração em geração, constituído por palavras que geralmente rimam e com muitas repetições, conferindo-lhe um carácter musical que facilita a rápida memorização.

Para além de José Lins do Rego, citado pelo consulente, encontramos a expressão noutros autores, por exemplo em Jorge de Lima, no poema sobejamente conhecido «Essa negra Fulô», em que a voz da negra se faz ouvir, contando uma história a pedido da sinhá:

 

«[...] 

"Era um dia uma princesa

que vivia num castelo

que possuía um vestido

com os peixinhos do mar.

Entrou na perna dum pato

saiu na perna dum pinto

o Rei-Sinhô me mandou

que vos contasse mais cinco". [...]»

 

     Segundo Kathleen Lessa, «PARLENDA [ou parlanda ou parlenga] tem origem em "parolar", "parlar", que significam "falar muito", "tagarelar", "conversar bobagens", "conversar sem compromisso".

      É um conjunto de palavras com pouco ou nenhum nexo e importância, de caráter lúdico, muito usadas em rimas infantis, em versos curtos, ritmo fácil, com a função de divertir, ajudar na memorização, compor uma brincadeira.

      Pode ser destinada à fixação de números, dias da semana, cores, dentre outros assuntos.» E dá este exemplo, entre outros:

 

Entrou pela perna do pato,

Saiu pela perna do pinto.

O rei mandou dizer

Que quem quiser

Que conte cinco:

Um, dois, três, quatro, cinco!

 

      Para Regina Antunes Meyerfeld, «a parlenda, por ser lúdica, não traz em si um sentido propriamente lógico, simbólico ou metafórico. Temos uma frase cuja função da linguagem é a de confirmar o processo da comunicação entre o emissor e o recetor.  Trata-se de uma função fática, traduzida por uma fala encantatória e convincente. Neste caso, os referenciais "perna do pinto e do pato", com a aliteração do fonema /p/ cria uma redundância que permite cristalizar, eternizar a comunicação. 

      Finalmente, a gradação entre pato e pinto é crescente ou decrescente, se pato ou pinto iniciam a parlenda.»¹

      Esperamos ter deslindado a dúvida do consulente. 

 ¹Repare-se que aparecem as duas cantilenas:«E entrou por uma perna de pato e saiu por uma perna de pinto» e «E entrou por uma perna de pinto e saiu por uma perna de pato».

 

N.E  – Os nossos agradecimentos aos prfessores brasileiros Eliene Zlatin, Luciano Eduardo de Oliveira e Regina Antunes Meyerfeld o contributo para esta resposta. 

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