A sua pergunta é muito curiosa.
Não foram os portugueses que optaram por grafar essas consoantes não articuladas, mas os brasileiros que optaram por deixar de as grafar.
Essas consoantes persistem por questões de natureza etimológica. Efectivamente, as palavras que as contêm têm um étimo, latino na maior parte das vezes, onde essas consoantes existiam e eram articuladas.
Na evolução da língua portuguesa, há a considerar três situações, em Portugal, a respeito das consoantes c /k/ e p /p/ em final de sílaba:
1.ª - Vocalizaram-se: directu- > direito; doctore- > doutor; lacte- > leite; lectu- > leito; lectore- > leitor; nocte- > noite; octubre- > outubro; pectu- > peito; respectu > respeito; secta > seita; acceptabile- > aceitável; preceptu- > preceito.
2.ª - Foram foneticamente assimiladas pelo som consonântico seguinte, desaparecendo a sua articulação (ou seja, não se lêem): abstracto (< abstractu-); acção (< actione-); acepção (< aceptione-); activo (< activu-); acto (< actu-); actualidade (< actualitate-); adjectivo (< adjectivu); adopção (< adoptione-); afectivo (< affectivu-); afecto (< affectu-); arquitecto (< architectu-); atracção (< attractione-); atractivo (< attractivu-); baptismo (< baptismu-); carácter (< do grego character); céptico (do grego skeptikós); concepção (< conceptione-); contracção (< contractione-); directo (< directu-); efectivo (< do francês effectif, este do latim effectivu-); exacto (< exactu-); excepção (< exceptione-); excepcional (adaptação do francês exceptionnelle); excepto (< exceptu-); factor (< factore-); flectir (< flectere); fracção (< fractione-); insecto (insectu-); inspecção (< inspectione-); jacto (< jactu-); lacticínio (< lacticiniu-); nocturno (< nocturnu-); objecto (< objectu-); óptimo (< optimu-); optimista (< do francês optimiste); percepção (< perceptione-); refractário (< refractariu-); respectivo (< respectu-); ruptura (< ruptura); sector (< sectore-); selecção (< selectione-) selecta (< selecta); sintáctico (do grego syntaktikós); susceptível (< susceptibile-).
3.ª Continuam a ser articuladas: adepto (< adeptu-); aptidão (< aptitudine-); apto (< aptu-), captar (< captare), corrupção (< corruptione-); corrupto (< corruptu-); facto (< factu-), factual (< de factum); ficção (< fictione-), fricção (< frictione-), impacto (impactu-); interrupção (< interruptione-); opção (< optione-), rapto (< raptu-); secção (< sectione-); sectário (< sectariu-), septuagenário < septuagenariu-); sucção (< suctione-).
Na 2.ª situação e na 3.ª, em Portugal, a grafia dessas consoantes manteve-se, pois, articuladas ou não, não se perdeu a percepção do seu étimo.
A Reforma Ortográfica de 1911 previa que essas consoantes se escrevessem, quer no caso de elas serem articuladas, quer para assinalar como aberto o som da sílaba precedente, quer para uniformizar radicais de palavras da mesma família. Em 1931, foi firmado um acordo entre a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras para a unificação da ortografia da Língua Portuguesa, mas este aspecto das consoantes não articuladas foi ressalvado pela Academia Brasileira, que considerou que elas deveriam ser eliminadas na grafia brasileira.
Como verificou pelos exemplos acima apresentados, actualmente há 5 situações na articulação e escrita destas palavras nas variantes lusa e brasileira:
1.ª Há um certo número de palavras em que a consoante é articulada tanto em Portugal como no Brasil, sendo, pois, a ortografia uniforme: adepto, apto, autóctone, compacto, convicção, núpcias.
2.ª Há casos em que a consoante é articulada no Brasil mas não em Portugal, sendo também a ortografia a mesma, pois, articulada ou não, a grafia portuguesa mantém a consoante: acepção, concepção, contraceptivo.
3.ª Há alguns casos em que a consoante é articulada em Portugal e não é no Brasil, sendo a grafia diferente: facto / fato; septuagenário /setuagenário; septuagésimo /setuagésimo.
4.ª Há muitos casos em que a consoante não é articulada nem no Brasil nem em Portugal, sendo a grafia diferente (no Brasil, sem grafar a consoante, em Portugal grafando-a): ação / acção; arquiteto / arquitecto; ótimo /óptimo.
5.º Há, finalmente, algumas palavras em que a ortografia brasileira admite duas grafias (correspondentes a uma dupla articulação) e a portuguesa apenas uma (sempre com a consoante, como já se disse, articulada ou não): aspecto /aspeto; dactilografia /datilografia; infecção / infeção.
No sentido de minimizar as diferenças entre os sistemas ortográficos português e brasileiro, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboraram, em 1975, um projecto de acordo que não obteve aprovação oficial. Em 1986, realizou-se no Rio de Janeiro um encontro em que participaram não apenas Portugal e o Brasil mas também os novos países africanos de língua oficial portuguesa, tendo surgido o Acordo Ortográfico de 1986 que desencadeou uma reacção polémica, não tendo sido viabilizado. Em 1990 foi fixado um novo texto de unificação ortográfica, uma versão menos profunda que as de 1975 e 1986 e que introduzia alterações relativamente à ortografia em vigor em Portugal, uma delas respeitante a essas consoantes não articuladas. Até à data, esse texto não entrou em vigor em nenhum dos países.
Talvez que, um dia, em Portugal, a exemplo de outras evoluções fonéticas que gradualmente foram tendo a sua correspondência a nível gráfico, as consoantes não articuladas deixem de ser grafadas. Mas esta questão ultrapassou o âmbito linguístico e entrou no terreno da cultura e identidade – entre outros -, onde há muitas susceptibilidades a respeitar...