Recomendo a forma Armagedão e a variante Armagedom, que se encontram bem abonadas.
O termo em questão é o nome de um lugar referido na Bíblia, mais concretamente, no Livro do Apocalipse (16:16), em que, no final dos tempos, os reis da terra inteira, congregados por três espíritos imundos, hão de pelejar na «batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso», a qual tem sido tradicionalmente interpretada como a derradeira refrega entre as forças do bem e do mal, cena que é retratada desta forma numa magnífica versão latina (Apocalypsis Sancti Johannis), publicada na Alemanha por volta de 1470.
O vocábulo figura apenas no referido versículo da Bíblia, que reza assim em grego, ou melhor, em koiné, língua em que foi originalmente escrito o Livro do Apocalipse:
καὶ συνήγαγεν αὐτοὺ ςεἰς τὸν τόπον τὸν καλούμενον Ἑβραϊστὶ Ἁρμαγεδών.
Na Vulgata, este versículo é traduzido da seguinte forma em latim:
Et congregabit illos in locum qui vocatur hebraice Armagedon.
O padre António Pereira de Figueiredo (1725–1797), conhecido latinista, historiador, canonista e teólogo, traduziu pacientemente a Vulgata durante 18 anos. O Novo Testamento foi publicado entre 1778 e 1781 em seis volumes, e o Antigo Testamento, entre 1782 e 1790 em 17 volumes. Em 1821, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira reuniu esta tradução num único volume, embora com numeração distinta para o Antigo e para o Novo Testamento. O referido versículo apresenta a seguinte redação nesta versão (p. 247):
«E elle os ajuntará n’hum lugar, que em Hebraico se chama Armagedon.»
Vejamos agora como foi este versículo vertido em várias outras traduções, algumas delas de renome, de modo geral trasladadas diretamente do grego, apresentadas aqui por ordem cronológica crescente. Salvo indicação em contrário, estas traduções estão em português brasileiro.
A Almeida Revista e Atualizada,1 editada pela Sociedade Bíblica do Brasil em 1959, traduz assim:
«Então, os ajuntaram no lugar que em hebraico se chama Armagedom.»
A chamada Bíblia da Ave Maria, publicada igualmente em 1959, traslada da seguinte forma:
«Então os reis foram reunidos no lugar que, em hebraico, se chama Harmagedon.»
A Bíblia Sagrada, publicada em 1978 pelas Edições Paulinas, apresenta a seguinte versão:
«Congregaram-nos, de fato, no lugar que em hebraico se chama Harmaguedon.»
A Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, publicada em 1967 (o Novo Testamento, em 1963) pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, pertencente às Testemunhas de Jeová, reza da seguinte forma, na sua versão de 1986:
«E ajuntaram-nos ao lugar que em hebraico se chama Har-Magedon.»
A Bíblia Interconfessional, publicada em 1993 (o Novo Testamento, em 1978) pela Sociedade Bíblica, traduz assim:
«Os três espíritos reuniram os reis num lugar que em hebraico se chama Harmaguédon.»
A Almada Corrigida Fiel, editada pela Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil em 1994, verte desta forma:
«E os congregaram no lugar que em hebreu se chama Armagedom.»
A Nova Tradução na Linguagem de Hoje, editada pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2000, traslada assim:
«Depois os espíritos ajuntaram os reis no lugar que em hebraico é chamado de “Armagedom”.»
A Nova Versão Internacional, editada pela Biblica em 2001 (o Novo Testamento, em 1994), traduz da seguinte forma:
«Então os três espíritos os reuniram no lugar que, em hebraico, é chamado Armagedom.»
Numa tradução intitulada simplesmente O Livro, editada também em 2001 pela já referida Sociedade Bíblica, depara-se-nos a seguinte versão:
«Esses espíritos diabólicos juntaram todos os exércitos do mundo perto de um lugar que em hebraico se chama Armagedom.»
A chamada Bíblia de Jerusalém, editada pela Paulus Editora em 1981, com revisão em 2002, traduz assim:
«Eles os reuniram então no lugar que, em hebraico, se chama “Harmagedôn”.»
Na quarta edição da chamada Bíblia dos Capuchinhos, dada à estampa pela Difusora Bíblica em 2003, em português europeu, encontramos a seguinte versão:
«E reuniu-os no lugar que, em hebraico, se chama Harmaguedon.»
Na já referida Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, das Testemunhas de Jeová, mas na versão de 2005, pode ler-se:
«E elas os reuniram no lugar que em hebraico se chama Armagedom.»
A Almeida Revista e Corrigida, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2009, traduz assim:
«E os congregaram no lugar que em hebreu se chama Armagedom.»
Por fim, a chamada Reina Valera, que foi publicada em português também em 2009 e é utilizada pela Igreja Universal, verte desta forma:
«E os reuniu no lugar que em hebreu se chama Armagedom.»
Resumindo, nas quinze traduções referidas, deparam-se-nos nada menos que sete variantes do referido topónimo (“Armagedon”, “Armagedom”, “Harmagedon”, “Harmaguedon”, “Har-Magedon”, “Harmaguédon”, “Harmagedôn”), algumas delas grafadas em itálico ou entre aspas, o que indica tratar-se, no entender dos respetivos tradutores ou editores, de meras transcrições e não de formas assimiladas. De todas estas variantes, apenas Armagedom apresenta clara prevalência (oito ocorrências).
Qual o motivo de tamanha profusão de formas? Em primeiro lugar, importa considerar que existem mais de 300 manuscritos em grego que contêm o texto integral ou parcial do Livro do Apocalipse, e que o topónimo em questão apresenta inúmeras variantes nessas fontes. Nas notas à sua tradução da referida obra, publicada em 2005 e com nova edição em 2015, David Robert Palmer referencia pelo menos 16 variantes, entre as quais Ἁρμαγεδών (Harmagedón), Ἀρμεγεδών (Armegedón), Αρμαγεδον (Armagedon), Μαγεδδών (Mageddón) e Ἀρμαγεδδων (Armageddon).2 A primeira variante referida (Ἁρμαγεδών, Harmagedón), de longe a mais frequente, é a que figura na versão do versículo citado no início deste artigo. Por outro lado, trata-se de um topónimo que aparece apenas nesse versículo bíblico não estando averbado em nenhum dos dicionários de grego ou de latim que pude compulsar, nem nos de maior monta. Por isso mesmo, terá porventura sido considerado como mera transcrição ocasional de um topónimo hebraico, e não como um vocábulo grego ou latino “ordinário”, assimilado e declinável, pelo que os tradutores, ao longo dos tempos, se têm mostrado hesitantes na forma de o transpor em vernáculo: uns optam por manter o som da oclusiva velar sonora na sílaba γε grafando gue, enquanto outros, seguindo a tradição de assimilação, consideram a sua natural evolução para fricativa pós-alveolar sonora e grafam ge; uns escrevem sem h, de acordo com a forma latina ou com algumas das variantes gregas, outros preferem grafar com h, com base na principal variante grega; uns preferem a acentuação oxítona, consoante o grego, outros a paroxítona, conforme o latim...
Esta questão, porém, apresenta outra vertente, que não se afigura de somenos importância. Ao longo dos tempos, o vocábulo em apreço acabou por adquirir uma relevância escatológica que, ultrapassando largamente a esfera da mera exegese bíblica, se tornou transversal a diversas orientações religiosas. Assentou na literatura e penetrou igualmente no domínio do cinema. Nesse sentido, das diversas variantes que figuram nas traduções portuguesas apontadas, houve uma (Armagedom) que se impôs claramente no Brasil, enquanto em Portugal ganhou raízes a forma Armagedão, que por acaso não figura em nenhuma das traduções bíblicas elencadas. Ambas se podem considerar filhas legítimas da forma “latina” Armagedon, com deslocação do acento para a última sílaba e consequente nasalização, no caso da forma brasileira, e ditongação, no que toca à variante portuguesa.
Em 1963, por exemplo, veio a lume o romance Armageddon, da autoria de Leon Uris (1924–2003), escritor norte-americano de ascendência judaica, que versa sobre a história de Berlim poucos dias antes da derrocada hitleriana. Em 1964, foi publicada pela Record a respetiva tradução brasileira, sob o título Armagedom, enquanto a tradução portuguesa, intitulada Armagedão, foi dada à estampa pela Europa-América logo no ano seguinte.
Já o filme norte-americano de ficção científica de catástrofe intitulado Armageddon, lançado pela Touchstone Pictures em 1998, passou no Brasil sob o título Armagedom, enquanto em Portugal se optou por manter o título original.
Sendo a temática escatológica tão importante na doutrina das Testemunhas de Jeová, não é de estranhar que a respetiva enciclopédia digital inclua o verbete Armagedom, no qual se refere igualmente a variante Armagedão. No corpo da enciclopédia, porém, esta segunda variante figura em apenas 7 verbetes, enquanto a primeira predomina largamente aparecendo registada em 28 verbetes. É provável que esta diferença seja reflexo da desproporção entre o número (ou a atividade) de colaboradores brasileiros e portugueses na composição desta obra.
Em 2007, foi dada à estampa a obra Gog, Armagedão e Quinto Império: o estado actual do mundo e o fim da humanidade?, da autoria de Francisco M. M. Alexandre.
Quanto a referências lexicográficas, importa salientar que o Dicionário Eletrônico Houaiss regista ambas as formas, mas, apesar de esta obra seguir geralmente a norma brasileira, parece dar preferência a Armagedão, pois remete Armagedom para aquela, à qual, além do significado relativo ao topónimo bíblico e à batalha que ocorre no mesmo, dá o sentido mais lato de «grande guerra final ou confrontação decisiva».
Já o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (2004, p. 140) regista apenas a forma Armagedão, à qual atribui o significado de «luta entre o bem e o mal segundo o Apocalipse» e ainda o de «luta final ou decisiva».
José Pedro Machado (1914–2005), no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (Confluência, vol. I, 1984, p. 164), estranhamente, regista o vocábulo sob a forma Armaguêdom, com as variantes Armaguedo e Armaguedão, sem indicar qualquer fonte, embora refira igualmente que a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira regista a forma Armagedão. Importa salientar que as formas com gue contrariam a tendência natural de assimilação de vocábulos gregos e latinos, segundo a qual o γε e γι gregos, tal como o ge e gi latinos, sofrem fricatização, mesmo que entrem por via erudita, pelo que devem grafar-se ge e gi, respetivamente. Por exemplo, o latim georgica, do grego γεωργικά, deu em português geórgica e não “gueórguica”...
Por último, refira-se o adjetivo “armagedónico”, ainda não dicionarizado, mas empregado com toda a propriedade por alguns escritores, nada havendo a obstar quanto à sua formação.
Por exemplo, na tradução brasileira de uma obra de José Argüelles (1939–2011), escritor e artista norte-americano de ascendência mexicana, da chamada Nova Era, publicada pela editora Cultrix em 2010 (a publicação original é de 1987), podemos ler um lamento sobre o «o clima armagedónico a que chegou a humanidade em nosso planeta» (p. 140).
Já o filósofo brasileiro Manuel Soares Bulcão Neto (1963–2012) falava em «mudanças sociais armagedônicas» (p. 89) na sua obra Sombras do Iluminismo, publicada em 2006 pela Viveiros de Castro Editora no Rio de Janeiro.
Armagedônico é o título de um poema que figura em Inferozmente, blogue de «um agnóstico-criacionista-bigbangueano» brasileiro.
Já no blogue Alienação Zorziana, cuja linguagem, fique aqui a advertência, poderá ferir certas suscetibilidades, o adjetivo “armagedónico” é utilizado pelo menos neste texto e nestoutro.
À guisa de conclusão, aqui vai uma recomendação para o nosso consulente, de tradutor para tradutor: use o vocábulo Armagedão sem rebuço, pois este está corretamente formado e encontra‑se bem abonado. Seria mesmo desejável que os futuros tradutores bíblicos lhe dessem primazia (ou à variante Armagedom, caso sejam brasileiros) evitando a constrangedora profusão de termos que se nos depara nas inúmeras traduções bíblicas publicadas até à data.
1 Esta versão, tal como as outras duas “Almeidas” seguidamente referidas, devem o título ao padre João Ferreira de Almeida (1628–1691), filho de pais católicos mas convertido à Igreja Reformada Holandesa em 1642, que traduziu o Novo Testamento integralmente e parte do Antigo.
2 É nesta última variante que radica a designação habitualmente utilizada em língua inglesa (Armageddon).