É verdade que em galego-português (ou em galego antigo, ou em português antigo, para o caso é o mesmo), as sequências do latim vulgar CL-, FL-, PL- passaram a ser pronunciadas como [tʃ], som africado surdo que ocorre, por exemplo, como consoante inicial da palavra inglesa chair. Por exemplo, CLAVE- passou a chave, AFFLARE-, a achar, e PLUMBU-, a chumbo.
Tendo em conta esta mudança, verificamos que, em teoria e por via popular, o latim FLORE- teria resultado na forma chor, e assim é, porque se encontra atestada, segundo José Joaquim Nunes, no Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa (Lisboa, Clássica Editora, pág. 96):
«A existência na antiga língua [de chor] é atestada, não só pelo provérbio referido à plantação da oliveira,
é cortar e pôr
mas ainda pelo seu derivado chorão.»
Contudo, a par de chor, encontramos formas em que o fenómeno fonético em causa não ocorreu: na Idade Média, existiam as formas fror e frol e uma outra, mais próxima do étimo latino, que acabou por se impor no português — flor.
Porque é que isto aconteceu? Os processos de mudança fonética podem ter excepções, porque a sua ocorrência se faz por difusão lexical. Isto quer dizer que tudo depende da história da palavra: se houver uma situação que impeça a produção do fenómeno fonético, então é possível que a palavra não seja abrangida por ele.
A história de flor é, a este respeito, curiosa, porque mostra que se usaram em variação quatro formas da mesma unidade lexical; não se percebe bem porque prevaleceu a mais conservadora, mas é provável que a presença do latim na Igreja e na administração a tenha favorecido. José Joaquim Nunes (op. cit., pág. 230, n. 2) explica simplesmente que flor «veio a suplantar, decerto introduzida na língua por influência erudita, a antiga chor».
Observe-se que basta ler com atenção as Cantigas de Santa Maria, do rei Afonso X de Castela (século XIII), para verificar que a Virgem Maria aparece muitas vezes referida como «flor das flores» ou, empregando a forma mais evoluída, «fror das frores». Contudo, a expressão nunca ocorre como «chor das chores». Tampouco a Base de Dados da Lírica Profana Galego-Portuguesa revela ocorrências da variante chor ou do seu plural, chores, o que me parece elucidativo da sua raridade já nos alvores do português e do galego escritos.