No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, escreve-se «a meia voz», expressão classificada como locução adverbial. Também o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (1998), inclui a meia voz, «em voz baixa, em segredo». Não encontrei nestes dicionários a forma “meia-voz”, que, no entanto, surge realmente no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa como substantivo.
O recente Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora também regista a forma meia-voz como substantivo, além de a atestar como parte da locução adverbial a meia-voz. Mas, na entrada de voz e de forma desconcertante, surge a expressão a meia voz, desta feita sem hífen.
O que mostra esta breve revista pela lexicografia actual é que os registos da locução a meia voz são contraditórios. Parece-me isto dever-se à recente dicionarização de meia-voz como substantivo, porque, entre os dicionários há pouco anos publicados, só o Dicionário Houaiss e o Grande Dicionário... da Porto Editora lhe dão entrada. Assim, compreende-se que a maneira de escrever a locução varie ou tenha variado, dando os dicionários a ideia de que a palavra se lexicalizou a partir do seu uso na locução adverbial a meia voz. Caso semelhante poderá ser o da locução de viva voz, «falando, oralmente», que tem potencialmente um composto “viva-voz” à espera de ser lexicalizado.
Quanto à questão do concurso, afigura-se-me imprudente a escolha de uma palavra cuja forma ainda não estabilizou, pelo menos, nos dicionários. Inclusivamente no dicionário que serve de bitola ao concurso, a expressão aparece hifenizada como meia-voz e não hifenizada na entrada voz.
Em relação a saber quem define a norma gráfica do português europeu, segundo Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos (Inovação Lexical em Português, Lisboa, Edições Colibri, pág. 42, n. 10), a Academia das Ciências de Lisboa é a entidade com competência legal para tanto. Quem leia no sítio da Academia das Ciências os respectivos estatutos verifica que esta entidade «é o órgão consultivo do Governo Português em matéria linguística» (artigo 5.º). Além disso, a Academia fez publicar o seu dicionário em 2001, o que deixaria supor que esta instituição tem força normativa.
No entanto, parece faltar à Academia das Ciências de Lisboa o peso que tem, por exemplo, a Real Academia Espanhola, que, como explicitamente se afirma no artigo 1.º dos seus estatutos, «tem, como missão principal, velar por que as mudanças que experimente a língua espanhola, na sua constante adaptação às necessidades dos seus falantes, não quebrem a essencial unidade que mantém, em todo o âmbito hispânico» (texto original em espanhol: «tiene como misión principal velar porque los cambios que experimente la Lengua Española en su constante adaptación a las necesidades de sus hablantes no quiebren la esencial unidad que mantiene en todo el ámbito hispánico»).1 Neste contexto, a monitorização oficial do uso linguístico em Portugal é talvez bem menos visível. De qualquer modo, também não se pode dizer que a fixação das formas gráficas seja da responsabilidade das casas editoras portuguesas...
Em conclusão, por muito lógica que seja a dicionarização de meia-voz no Grande Dicionário... da Porto Editora, as contradições referidas significam que, por enquanto, há variação na representação gráfica dessa palavra quando ocorre na locução a meia voz/meia-voz. Por outras palavras, no 1.º teste do Campeonato Nacional da Língua Portuguesa, não se poderia dizer que a forma hifenizada era a correcta, porque a não hifenizada é também aceite pelos dicionários mais actualizados.
1 Agradeço à consulente Vera Castro (Porto, Portugal) a tradução do original espanhol.