Não é por acaso que o sujeito poético de Tabacaria, de Álvaro de Campos, inicia o poema com uma estrofe curta (a estância mais pequena da poesia), de quatro versos, em que afirma, assertivamente, a sua realidade marcada intencionalmente pela presença de três frases negativas — «Não sou nada/Nunca serei nada/Não posso querer ser nada.»
Para além da presença da dupla negação em cada um dos três versos, não podemos deixar de assinalar, também, o cuidado com a precisão da repetição anafórica/anáfora do pronome indefinido substantivado nada, com que cada frase termina. Ora, esta técnica do uso da dupla negação, coadjuvada pela anáfora de nada a culminar cada afirmação, deixa transparecer, sem qualquer sombra de dúvida, duas realidades distintas:
– a do olhar do sujeito poético sobre o eu (o sujeito que observa, que diz e que analisa);
– o eu propriamente dito (o objecto de análise).
Analisando o olhar do sujeito poético, apercebemo-nos do modo como encara o «eu», sobressaindo uma visão crítica totalmente negativa (por isso, o uso da dupla negação), bastante dura e arrasadora do «eu», dita em poucas palavras bastante precisas, em que se destaca a brevidade e a concisão, evidenciando o cuidado em utilizar poucas palavras para definir o outro, o eu: poucas palavras para o «pouco», o «nada», o «não». O olhar sobre o eu-outro que o inquieta é atento e duro, revelado pela frontalidade das suas palavras.
O eu, por sua vez, caracteriza-se repetidamente como «nada», anulando-se por completo e usando simbolicamente o número três (as três vezes que repete) para marcar a perfeição com que se define, de modo a que não haja dúvidas da certeza da sua realidade: o «não ser», a negação da existência, o vazio. Realidade essa que é agravada pela consciência da sua imutabilidade — destacada pela presença de nunca, «advérbio de predicado com valor temporal» (Dicionário Terminológico), cujo valor «em nenhum tempo», «em nenhuma circunstância» destrói qualquer perspectiva de alteração —, o que é agravado pela rejeição de si próprio («Não posso querer ser nada» = «não posso ser assim).