Analisemos, em primeiro lugar, a frase de António Vieira:
«(...) porque a terra e o mar tudo era mar.» (António Vieira. Sermão de Santo António aos Peixes, cap. II).
Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, ao falar do aposto, refere o facto de ele poder ser enumerativo e dá como exemplo a frase «Tudo – alegrias, tristezas, preocupações – ficava estampado logo no seu rosto.» Refere, ainda, que este aposto pode, mesmo, ocorrer antes do elemento fundamental, ou seja, daquele que influi na concordância: «A matemática, a história, a língua portuguesa, nada tinha segredos para ele.»
Seguindo esta interpretação, e assumindo que as regras de colocação da vírgula não são, hoje, exactamente como eram no tempo de Vieira, poderemos analisar a frase da seguinte forma:
a terra e o mar(,) tudo – sujeito
a terra e o mar – aposto enumerativo
era mar – predicado
mar – predicativo do sujeito.
Olívia Maria Figueiredo e Eunice Barbarieri de Figueiredo, no Prontuário Actual da Língua Portuguesa, Edições Asa, Porto, classificam de forma diferente o pronome indefinido tudo segundo ocorre antes ou depois da enumeração. Assim, numa frase como a de Vieira, elas diriam tratar-se de um aposto resumativo, pois tem a função de resumir, ou englobar, o que anteriormente foi explanado. Se ocorresse no início, seria um aposto especificador, porque introduziria uma enumeração. Em qualquer das situações consideram que o aposto é o indefinido e não a enumeração que o precede ou antecede.
A explicação de Bechara parece-me suficiente e clara, para além de resolver o problema da concordância.
Relativamente às restantes frases que submete à nossa apreciação, começo por
numerá-las, de forma a facilitar a exposição:
(1) Marina e Daniel eram ambos estudantes.
(2) Marina e Daniel, seriam eles estudantes?
(3) Os cientistas premiados eram todos reconhecidamente inteligentes.
Antes de fazer a análise das frases, gostaria de referir um fenómeno designado flutuação dos quantificadores, que acontece sobretudo com todos e ambos, mas também com tudo. Consiste esse fenómeno na deslocação do quantificador que, na realidade, faz parte do sujeito para uma posição pós-verbal.
Ana Maria Brito, na Gramática da Língua Portuguesa, de Mira Mateus e outras, Lisboa, 5.ª ed., pág. 446, considera a hipótese de, inicialmente, se tratar de frases em que o sujeito era posposto, o que nos levaria a interpretar não a flutuação do quantificador, mas sim a “migração” do sujeito para uma posição pré-verbal, por forma a assumir, com maior facilidade, o caso nominativo que caracteriza o sujeito.
De qualquer forma, falaremos aqui de flutuação dos quantificadores. Acerca desse tema, no sítio do Instituto Camões encontrei uma análise bastante circunstanciada.
Aí se diz que, quando o quantificador integra um sujeito, a possibilidade de ocorrer flutuação pode levá-o para uma posição pós-verbal, enquanto, se fizer parte de um outro constituinte, essa mudança de posição, quando é possível, acontece no seio do próprio constituinte: «Ele leu [todos os livros que a Maria lhe emprestou].»; «Ele leu [os livros todos que a Maria lhe emprestou].»
Há, pois, um fenómeno linguístico que permite considerar (3) e (3.1) como equivalentes, ainda que não veiculando, necessariamente, o mesmo sentido.
(3.1) Todos os cientistas premiados eram reconhecidamente inteligentes.
Podemos concluir que, em (3), todos é um determinante e faz parte integrante do sujeito, tendo sofrido uma flutuação, ou seja, uma deslocação para posição pós-verbal.
Na frase (1), por seu lado, dadas as características “enumerativas” do sujeito, creio que ambos não é um determinante, ainda que faça parte do sujeito. A estrutura que me parece subjacente aproxima-se da que vimos na frase de Vieira; ou seja, trata-se do verdadeiro sujeito, sendo «Marina e Daniel» – ou a Marina e o Daniel, como diríamos por cá… – um aposto enumerativo. Repare-se que, se deslocarmos o dual para a sua posição, os dois nomes próprios deverão ser colocados entre vírgulas:
(1.1) Ambos, Marina e Daniel, eram estudantes.
(1.2) Marina e Daniel, ambos eram estudantes.
Em (1) estamos, assim, perante um sujeito constituído por um pronome (ambos) catafórico, ou seja, vindo antes dos nomes que representa, em (1.1), anafórico, ocorrendo depois dos nomes para que remete, em (1) e (1.2) – e por um aposto, Marina e Daniel.
Distinta é, creio, a situação da frase (2). Aí, estamos perante uma situação de topicalização, ou realce, do sujeito, que é reforçado através da sua repetição. Note-se que dificilmente se aceitaria a “migração” do pronome para junto dos elementos que representa na frase:
(2.1) *Eles, Marina e Daniel, seriam estudantes?
(2.2) (?)Marina e Daniel, eles seriam estudantes?
Em conclusão, a frase (1), contendo embora o fenómeno de flutuação do quantificador, tem uma estrutura semelhante à da que Vieira escreveu; a frase (2) exibe uma estrutura de realce e repetição do sujeito, enquanto em (3) se regista “tão-somente” uma flutuação do quantificador.