Soraia Valy Lourenço - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Soraia Valy Lourenço
Soraia Valy Lourenço
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Licenciatura em Línguística (com Ramo de Formação Educacional) e mestrado em LCP- Metodologia de Ensino de PLE/PL2 pela Universidade de Lisboa. pós-graduação em Estudos Pós-Coloniais. Leitora do Instituto Camões, na Universidade de Zagreb, Croácia. É autora do livro Um Quadro de Referência para o Ensino do Português em Timor-Leste (2011) e de artigos na área do Ensino e Aprendizagem de PLE/PL2.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Se é correcto dizer «um anglicismo há muito entrado na nossa língua», também se pode dizer «um assunto muito falado»? A frase «As cartas eram respondidas à tarde», que li, há dias, num livro, está bem formulada (uma vez que o verbo responder, neste caso, não rege complemento directo)?

Obrigada.

Resposta:

Apesar de falar não ter associado um complemento direto, é possível empregar o verbo na passiva e dizer «o assunto foi muito falado», no sentido de «o assunto foi muito discutido».

Na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 435), organizada por Raposo et alii, pode ler-se o seguinte (negrito nosso):

«[S]ó podem ocorrer em orações passivas verbos de dois ou três lugares em que o argumento que se realiza como sujeito tem o estatuto de argumento interno direto na entrada lexical do verbo [...]; em [1] ocorre um verbo que seleciona não um argumento interno direto, mas sim um argumento interno preposicionado, como se verifica [na oração ativa correspondente, à direita do exemplo]:

[1]*A conferência foi assistida pelos doutorandos (vs. os doutorandos assistiram à conferência).

Contam-se como exceções a esta generalização os verbos apelar, obedecer, pagar, perdoar e responder, como exemplificado em [2]: 

[2] Os pedidos de isenção não foram respondidos a tempo pelos serviços. (cf. os serviços não responderam a tempo aos pedidos de isenção).»

 Ainda relativamente ao verbo responder pode ler-se na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, que, na aceção de “dar resposta”, “dizer ou escrever em resposta”, admite construções com objeto direto para exprimir a resposta, o que legitima...

Pergunta:

Tenho ouvido ultimamente muitas vezes a RTP Internacional referir-se a pessoas que foram submetidas ao transplante de qualquer órgão como "transplantados". Hoje ouvi a seguinte frase: «Os transplantados da região norte já podem ser tratados nos hospitais das suas localidades.»

Agradeço muito que me esclareçam se é correto ou não. Sou apenas um curioso que ficará muito agradecido.

Resposta:

O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista a palavra transplantado, como algo ou alguém que tenha sofrido um transplante.

Contudo, importa referir que a extensão do termo que designa o órgão transplantado (no contexto que o consulente apresenta) àquele que sofreu o transplante se faz por meio de um recurso estilístico – a metonímia.

 A metonímia é a «figura de linguagem por meio da qual se coloca uma palavra em lugar de outra cujo significado dá a entender. Ou a figura de estilo que consiste na substituição de um nome por outro em virtude de uma relação semântica extrínseca existente entre ambos. Ou, ainda, uma translação de sentido pela proximidade de ideias. Consiste, assim, na ampliação do âmbito de significação de uma palavra ou expressão, partindo de uma relação objetiva entre a significação própria e a figurada» (E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9).

Pergunta:

Gostava de saber se existe a palavra ilocalizada. Penso que não, mas pretendo saber ao certo. Ex.: «A caixa está ilocalizada» – como quem diz que não é possível localizar, não se sabe onde está.

Obrigado.

Resposta:

A palavra "ilocalizada" ["(i)localizar"] não se encontra registada nos dicionários gerais de língua consultados, como o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea e o Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss.1,

No entanto, após uma breve pesquisa no Vocabulário Ortográfico do Português, verifica-se que o prefixo i(n)-, com significado de privação/negação, não é comum na formação de verbos2, coocorrendo mais naturalmente com adjetivos. Deste modo, destacamos o termo ilocalizável, que, apesar de também não se encontrar registado nos referidos dicionários, podemos encontrar o seu registo em alguns contextos de uso, como, por exemplo, em contexto literário:

«E essa dor ilocalizável, subliminar, sempre a roer-me, tornou-se a insidiosa companheira de todas as horas», in A imensa boca dessa angústia e outras histórias, de Urbano Tavares Rodrigues.

Ainda a propósito da utilização do prefixo i(n)-, o Dicionário Houaiss (edição de 2001)  refere que:

 «[in-] [...] do pref[ixo] lat[ino] in-, `privação, negação´, [...] é cultismo que começa a ser empregado na língua do s[éculo] XIV em diante, prosperando em fecundidade até aos dias de hoje, conformando-se aos padrões latinos originais, como prefixo em adjetivos, em particípios passados e/ou supinos, em substantivos, em advérbios e em der[ivados] de tais pal[avras] assim formadas; [...] eis algumas seqüências de exemplificação: feliz:infeliz, lícito:ilícito, válido:inválido, polido:impolido; fe...

Pergunta:

Gostaria de ver uma lista de substantivos que nao seguem a regra da concordância com o artigo. Por exemplo, «o mapa», «o mar», «o dia», «a mão», «a razão».... Qual a razão por que estes substantivos não seguem a regra?

Resposta:

O Dicionário Terminológico define género como uma categoria morfossintática, distinguindo-se em português dois valores de género: masculino e feminino. Nos nomes que referem uma entidade animada (uma pessoa ou um animal), o valor de género corresponde, tipicamente, a uma distinção de sexo, excepto no caso dos nomes epicenos (como sapo ou corvo), sobrecomuns (como vítima ou cônjuge) e comuns de dois (como estudante ou jornalista) e ainda em casos irregulares (como no par cavalo/égua). Nos restantes nomes, esta correspondência não se verifica.

Corbett (1991) caracteriza género como «the most puzzling of grammatical categories» [=«a mais desconcertante das categorias gramaticais»], defendendo que a atribuição dos valores de género pode depender de critérios semânticos e formais. Na evolução das línguas, o género demonstra ser uma categoria arbitrária do ponto de vista referencial e totalmente convencional:

Exemplo:
latim                português            francês
mare (n.)            o mar (m.)            la mer (f.)

No latim existia uma categorização tripartida, masculino, feminino e neutro, enquanto em algumas línguas românicas derivadas se mantêm apenas duas – masculino e feminino. Na transição do latim clássico para o latim vulgar, o valor do neutro foi-se perdendo gradualmente, chegando a desaparecer, prevalecendo os géneros masculino e feminino (Gouveia, 2005). Com esse desaparecimento, os nomes cuja desinência coincide...

Pergunta:

«Não! Não era a ansiedade demolidora o que ele queria; muito menos o ardor vil pelas curvas crescentes de lucratividade e (nem) o papel de mera peça descartável de uma gigantesca máquina de produção.»

Na frase acima é melhor empregar e, ou nem?

Obrigado.

Resposta:

Na frase em análise deve empregar-se nem, uma vez que esta conjunção se usa na adição de unidades negativas, sendo a negação da conjunção e (nem = «e não»). A conjunção e emprega-se na adição de unidades afirmativas/positivas.

(1) Não! Não era a ansiedade (...), muito menos (também não era) o ardor vil (...), nem (e não) o papel de mera peça descartável (...).

(2) * Não! Não era a ansiedade (...) muito menos (também não era) o ardor vil (...), e o papel de mera peça descartável (...).

Em termos gramaticais, a frase 2 não se considera aceitável.*

* Ocorrendo dois elementos coordenados numa construção negativa é necessário utilizar nem de forma a possibilitar a sua própria coordenação, uma vez que e coordena elementos em que haja valor positivo/afirmativo. A utilização de uma ou outra conjunção implicará estruturas de diferente valor semântico.

Não obstante, pode-se objetar que há exemplos em que e e nem equivalentes:

i) A bandeira espanhola não é verde e vermelha.

ii) A bandeira espanhola não é verde nem (= e não é) vermelha.

Contudo, não isso que se verifica, porque a frase (i) significa que a bandeira em referência não tem as duas cores juntas, podendo inclusivamente continuar-se a frase dizendo «é amarela e vermelha»; pelo contrário, na frase (ii) declara-se...