Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é o significado das expressões «criar cama» e «ganhar cama» usadas em Húmus de Raul Brandão, terceira edição:

«As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. Só eu me afundo soterrado em cinza. Terei por força de me habituar à aquiescência e à regra? Crio cama e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da morte mais fundo e mais perto. ... e finjo, e o sorriso acaba por ganhar cama, a boca por se habituar à mentira...»

Agradecia a ajuda

Resposta:

As expressões «criar cama» e «ganhar cama», no excerto da obra de Raul Brandão, remetem para um estado de acomodação ou de hábito, num registo marcadamente metafórico.

Vejamos: por um lado «criar cama» parece sugerir o estabelecimento de uma rotina ou padrão. Na oração «o riso postiço criou cama», compreende-se que o riso postiço/falso, inicialmente forçado, se enraizou de tal forma que passou a integrar o quotidiano, fazendo agora parte de um comportamento repetido; por outro lado, «ganhar cama» pode ser interpretado como a transformação de algo numa prática habitual. A expressão «o sorriso acaba por ganhar cama» indica que o sorriso, ainda que inicialmente artificial, acaba por se tornar uma ação repetitiva e automática, sem reflexão.

Estas expressões apontam, portanto, para a ideia de que determinados gestos ou sentimentos se solidificam, ganham terreno, tal como uma cama que, em sentido figurado, simboliza um espaço de acomodação ou resignação, frequentemente associada à rotina e à falta de autenticidade.

O que é um <i>genuflexório</i>
A descoberta de Luís Marques Mendes

Será que, à semelhança do comentador Luís Marques Mendes, desconhecemos o que é um genuflexório? E genuflexo, o que significa, também? A consultora Sara Mourato esclarece o significado e a origem desses termos, revelando o contexto e a importância de ambos.

Pergunta:

Os sete livros que compõem a obra-prima do norueguês Jon Fosse saíram em Portugal com o título Septologia, e não "Heptalogia", como seria a forma mais comum de se referir a uma coletânea de sete unidades.

Pesquisei bastante e tudo a que cheguei em relação ao radical septo- aponta para acepções anatômicas ou biológicas, não numéricas.

O que teria levado a prestigiosa editora que lançou o volume a optar por esse título?

Agradeço a atenção da resposta.

Resposta:

Heptalogia corresponde, de facto, a um conjunto de sete obras: formado por hepta, do grego heptá, elemento de formação de palavra que exprime a ideia de sete, e por logia, «elemento de formação pospositivo, de origem grega [-logía] e caráter nominal, que traduz a ideia de estudo, tratado» (Infopédia). Portanto, denominar a obra de Jon Fosse1 como heptalogia estaria, certamente correto.

Contudo, é igualmente correto afirmar que esta obra composta por sete partes é uma septologia. Note-se que esta é uma palavra híbrida do latim e do grego, i.e., composta por um elemento latino septem (sete), elemento de composição com o significado de «sete», e pelo já referido elemento de formação pospositivo grego -logia. No inglês, por exemplo, a obra de Jon Fosse é designada como Septology.

Cabe, portanto, concluir que heptalogia e septologia são termos sinónimos. Ainda assim, embora septologia seja o termo escolhido em Portugal para título da obra de Jon Fosse, tecnicamente, heptalogia seria uma alternativa válida e mais purista.

 

1 Note-se que, no caso em apreço, não temos uma obra organizada em sete livros, mas sim uma obra composta por sete partes organizadas em três livros: O outro nome – septologia I-II, O eu é um outro – septologia III-V, Um novo nome – septologia VI-VIII.

Pergunta:

Esclareçam-me uma dúvida lexical, que é sobre qual é a origem do famoso berro dos arrumadores [em Portugal]:

«..."troce" tudo, agora "destroce" para o outro lado, vá a direito ....»

Se estes "troce", "destroce" são mesmo as conjugações de troçar e destroçar? Assim sendo, nenhum dicionário traz esse sentido de nenhum desses verbetes.

Obrigado.

 

Resposta:

É comum ouvir-se arrumadores de carros a usarem as expressões "troce" e "destroce" para dar indicações aos condutores durante o estacionamento. No entanto, essas formas não correspondem aos verbos que parecem à primeira vista. O correto é utilizar torce e destorce, que são conjugações dos verbos torcer e destorcer (não confundir com distorcer, «deturpar»).

As expressões troce e destroce não são formas dos verbos torcer e destorcer, mas, sim, de troçar e destroçar, que têm significados diferentes e não se aplicam ao contexto de estacionar veículos. Troçar significa «zombar de; escarnecer, ridicularizar», e destroçar significa «causar a destruição de; arruinar, despedaçar» (Dicionário Houaiss), o que não se alinha com o uso pretendido pelos arrumadores de carros.

Portanto, a origem da famosa ordem ou berro dos arrumadores está mais ligada a uma adaptação fonética deturpadora e informal do verbo torcer, e não aos verbos troçar e destroçar. Nenhum dicionário traz essas formas específicas (troce e destroce) com o significado de instruções para estacionar.

Qual é o nome do seu <i>doguinho</i>?
Um caso de hibridismo anglo-português

Doguinho é um nome que pode levantar alguma curiosidade a quem o ouve. Contudo, o mesmo, que combina o inglês dog com o sufixo diminutivo português -inho, revela um exemplo de hibridismo linguístico. O termo doguinho ilustra como palavras estrangeiras são adaptadas e transformadas na língua portuguesa, refletindo a interação cultural e a evolução do idioma. A este propósito, a consultora de linguística Sara Mourato analisa como o uso de doguinho e o verbo checar exemplificam a flexibilidade do português na incorporação de termos de outras línguas.