Sara de Almeida Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Num blogue intitulado Grafofone critica-se o jornalista Mário Crespo por ter empregado o adjectivo judia, em vez de judaica, nesta frase: «[Aristides de Sousa Mendes] ajudou a população judia.» 

Transcrevo a argumentação do autor do referido blogue, Ricardo Cruz:

«Hoje faz cinquenta anos que morreu (na miséria e escorraçado pelo governo português de então) Aristides de Sousa Mendes. A sua actuação durante a II Grande Guerra terá salvo centenas de milhares de pessoas da morte em campos de concentração. O jornalista da SIC Notícias, Mário Crespo, estava a apresentar uma pequena reportagem sobre a actuação de Aristides de Sousa Mendes , quando o ouço dizer "ajudou a população judia". Pois realmente a verdade é que essa afirmação é falsa... Quem ele ajudou efectivamente foi a população judaica.

Mário Crespo: errar é humano, mas há erros e erros. Para quem está numa posição na qual o que diz é ouvido por milhares de pessoas e tido como normativamente correcto, torna-se importante ter atenção a estes deslizes. Não me leve a mal, se calhar fui eu que ouvi bem demais!

Para que não restem dúvidas:

os adjectivos biformes terminados em -eu formam o feminino em -eia: europeu, europeia; hebreu, hebreia.

Contudo, judeu e sandeu são excepções: judia e sandia.

Mas a questão não reside aqui....

Resposta:

A argumentação de Ricardo Cruz parece ser corroborada pela edição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que possuo (Círculo de Leitores, 2007). Nela se atesta que judaico é adjectivo («relativo ou pertencente aos judeus ou ao judaísmo») e que judia é apenas substantivo («mulher de origem judaica»). De acordo com o mesmo dicionário, a origem etimológica de judaico é precisamente a que Ricardo Costa refere, enquanto judia virá do latim judaea, ae, que significava «mulher judia».

Contudo, é curioso, e é de salientar, que judeu esteja atestado nesse dicionário como adjectivo e substantivo e que judia, que é o seu equivalente feminino, apenas surja como substantivo.

Outros dicionários parecem ser mais coerentes neste aspecto. No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, a primeira acepção de judia é a de adjectivo e o seu significado é este: «da Judeia». Outros dicionários, como o da Texto Editora (www.priberam.pt) e o da Academia das Ciências de Lisboa, atestam igualmente que o termo judia pode ser usado como adjectivo ou substantivo e que corresponde ao feminino de judeu. Ora, isto implica que judia pode perfeitamente ser empregado, como referiu o consulente, como sinónimo de judaica.

Assim sendo, a crítica que se faz a Mário Crespo, por ter feito (erradamente) «uma analogia entre o substantivo gentílico e o adjectivo correspondente» parece-me despropositada.

 Cf.

Pergunta:

O plural do nome composto vice-presidente é vice-presidentes, certo? No entanto, gostaria que me esclarecessem sobre a classificação morfológica da palavra vice.

Obrigada.

Resposta:

Na palavra vice-presidente, vice- é um elemento de formação, um prefixo, que deriva do latim vice («em vez de»). É invariável, pelo que não se flexiona no plural, no caso de palavras derivadas por prefixação, como vice-reis, vice-presidentes, vice-campeões.

No entanto, vice é também classificado como substantivo dos dois géneros em dicionários brasileiros: no Dicionário Houaiss, trata-se de «redução de substantivos precedidos do elemento antepositivo vice- (p. ex., de vice-presidente, vice-governador, vice-diretor etc.)»; no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (São Paulo, Editora UNESP, 2004), é «pessoa que substitui outra em cargos diversos».

Pergunta:

A frase «Sempre vamos ao cinema?» está correcta gramaticalmente, no que toca ao uso de sempre?

Obrigada.

Resposta:

A frase que apresenta está correcta.

O advérbio sempre tem, aqui, o significado de «afinal, efectivamente», no sentido em que a pessoa que faz a pergunta pretende que seja confirmada a acção em causa (ir ao cinema). Nestes casos, surge em posição pré-verbal (exemplos: «E amanhã, sempre queres ir?»;  «Sempre te apetece sair?» «Achas que eles sempre vêm?»).

Se o mesmo advérbio fosse transferido para uma posição pós-verbal (por exemplo «Vamos sempre ao cinema?», ou «Vamos ao cinema sempre»), o seu significado alterar-se-ia para «continuamente, constantemente».

Pergunta:

Traduzo frequentemente textos técnicos (informática) de inglês americano para português.

Recentemente, deparei-me com a necessidade de traduzir typed (que, pelo menos no contexto, não tem o mesmo significado que typified).

Para mim, a tradução correcta seria "tipado" e não "tipificado".

Será o termo "tipado" correcto em português?

Resposta:

Uma palavra polissémica como type (e tantas outras!) não deve ser traduzida sem conhecimento do enunciado em que ocorre.

No caso da forma typed, que é uma flexão do verbo to type no passado (past simple), ou particípio, esta tanto pode ser traduzida por dactilografado, ou teclado, como por tipificado ou representado, já que type também pode ser sinónimo de typify. Tudo depende do contexto!

Quanto ao termo “tipado”, não o encontrei nos dicionários que consultei, pelo que desaconselho o seu uso.

Pergunta:

Gostaria que me pudessem explicar que figura de estilo está neste verso de Álvaro de Campos: «Começa a haver meia-noite.»

Muito obrigada.

Resposta:

Considerando o verso integral («Começa a haver meia-noite, e a haver sossego»), e em termos de construção, julgo que não existe aqui propriamente uma anáfora, dado que a repetição da palavra «haver» não se dá, neste caso, no início de versos, nem no início de frases, não havendo um estrito paralelismo formal entre «começa a haver» e «e a haver».

Em termos de conteúdo, eu diria que estamos em presença de uma metáfora, em que «meia-noite» designará, para o poeta, o momento nocturno em que a  calma é total, em que tudo está silencioso e adormecido: a parte mais profunda da noite e, nesse sentido, o seu "meio": pois nele se está o mais longe possível do início e do fim.