Sara de Almeida Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

As mediadoras imobiliárias costumam colocar nos cartazes nos imóveis que têm à venda a palavra "Vende-se".

A minha dúvida é se se deve colocar a palavra "Vende-se" ou "Vende".

"Vende-se" parece-me que significa que o imóvel se vende a si próprio, o que não é o caso, pois recorre-se a uma mediadora para o vender!

Pergunto se utilizar "Vende" seria o correcto: «A Mediadora Tal e Tal vende...» (embora nesta situação também não seja a Mediadora que vende, pois não é a proprietária do imóvel, apenas intermedeia o negócio).

Resposta:

Compreendo o seu raciocínio, mas a verdade é que o pronome -se em vende-se não é reflexo, pelo que não implica que o sujeito e o objecto da acção são a mesma pessoa.

Em relação ao significado e à função deste pronome -se, há duas leituras possíveis. Por um lado, podemos sustentar que serve para indicar a indeterminação do sujeito, nos casos em que se pretende enfatizar a acção em si (sendo «vende-se» substituível por «alguém vende», tal como na frase «soube-se finalmente a verdade», o pronome -se representa as pessoas em geral [souberam]). Por outro lado, podemos dizer que é um pronome apassivante, já que neste tipo de construção («vende-se uma casa», «vêem-se as estrelas», «tiram-se conclusões», etc.) o objecto (casas, estrelas, conclusões) é na realidade o sujeito da oração passiva que ali está representada: «uma casa é vendida», «as estrelas são vistas», «conclusões são tiradas».

Seja qual for a perspectiva, porém, a construção «vende-se (algo)» está correcta. Todavia, as agências podem igualmente optar por anunciar a venda ou o arrendamento de imóveis da forma que o consulente sugere: «A Mediadora Tal vende ou arrenda (algo)» — e algumas até o fazem (ainda que sejam meras intermediárias, são na verdade essas empresas que efectuam o negócio).

Pergunta:

Cônjuge e consorte são sinônimos. Consorte é comum-de-dois, e cônjuge é sobrecomum, apesar de em dicionários eu encontrar comum-de-dois. Qual o certo e o errado?

Desde já agradeço e sinto uma grande satisfação de participar do seu estimável site.

Resposta:

Cônjuge é, de facto, um substantivo masculino sobrecomum: pode designar tanto uma pessoa do sexo masculino como uma do sexo feminino, tal como (o) indivíduo ou (o) membro.

Assim, mantém-se o masculino na frase: «Ela é o cônjuge mais dedicado que alguém pode ter.»

Consorte, sim, é substantivo de dois géneros. Quer isto dizer que a palavra é invariável quanto ao género, mas pode ser precedida de um determinante masculino ou feminino (o/a, um/uma, aquele/aquela, etc.), conforme o sexo da pessoa que se pretende designar. O mesmo acontece com muitos outros substantivos terminados em -e e também em -a, como estudante e dentista.

Portanto, e tendo em conta que os termos cônjuge e consorte são sinónimos, a frase anterior poderia ser alterada da seguinte forma:

«Ela é a consorte mais dedicada que alguém pode ter.»

Pergunta:

O que significa o provérbio «Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão»?

Resposta:

 

O ditado tem um significado literal, pois com ele se alega que uma pessoa que expropria outra de objetos por esta roubados deve ser ilibada da sua culpa, por ter praticado um ato que acaba por ser (ainda que perversamente) justo.

Embora não haja consenso sobre a sua origem, é impossível não associar este ditado à história Ali Babá e os Quarenta Ladrões (incluída em As Mil e Uma Noites).

Pergunta:

Tenho visto seqüenciamento, mas outro dia me apareceu seqüenciação. A meu ver é também aceitável, mas estarei certo?

Obrigado.

Resposta:

Não obstante a presença de ambos os substantivos nos dicionários brasileiros de língua portuguesa, eu diria que o termo sequenciamento é usado preferencialmente no Brasil (não aparecendo, sequer, nos dicionários portugueses que consultei), ao passo que, em Portugal, se prefere o termo sequenciação (sem o trema).

Por outro lado, é de referir que nem sempre se verifica a sinonímia entre as duas palavras. Leiam-se os verbetes do Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, org. Francisco Borba, São Paulo, Editora UNESP, 2004:

SEQÜENCIAÇÃO se-qüen-ci:a-ção Sm comando, segundo um encadeamento definido, das diferentes fases de uma operação: Era preciso supervisionar a ordenação, a seqüenciação e a hierarquização das ações

SEQÜENCIAMENTO se-qüen-ci:a-men-to Sm 1 qualidade de seqüente; seqüencialidade: O cientista registrou o seqüenciamento da pesquisa. (Bioquím) 2 determinação da estrutura molecular: Só com as fitas desenroladas é que podem fazer o seqüenciamento de moléculas que formam os genes do DNA.

Pergunta:

Num blogue intitulado Grafofone critica-se o jornalista Mário Crespo por ter empregado o adjectivo judia, em vez de judaica, nesta frase: «[Aristides de Sousa Mendes] ajudou a população judia.» 

Transcrevo a argumentação do autor do referido blogue, Ricardo Cruz:

«Hoje faz cinquenta anos que morreu (na miséria e escorraçado pelo governo português de então) Aristides de Sousa Mendes. A sua actuação durante a II Grande Guerra terá salvo centenas de milhares de pessoas da morte em campos de concentração. O jornalista da SIC Notícias, Mário Crespo, estava a apresentar uma pequena reportagem sobre a actuação de Aristides de Sousa Mendes , quando o ouço dizer "ajudou a população judia". Pois realmente a verdade é que essa afirmação é falsa... Quem ele ajudou efectivamente foi a população judaica.

Mário Crespo: errar é humano, mas há erros e erros. Para quem está numa posição na qual o que diz é ouvido por milhares de pessoas e tido como normativamente correcto, torna-se importante ter atenção a estes deslizes. Não me leve a mal, se calhar fui eu que ouvi bem demais!

Para que não restem dúvidas:

os adjectivos biformes terminados em -eu formam o feminino em -eia: europeu, europeia; hebreu, hebreia.

Contudo, judeu e sandeu são excepções: judia e sandia.

Mas a questão não reside aqui....

Resposta:

A argumentação de Ricardo Cruz parece ser corroborada pela edição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que possuo (Círculo de Leitores, 2007). Nela se atesta que judaico é adjectivo («relativo ou pertencente aos judeus ou ao judaísmo») e que judia é apenas substantivo («mulher de origem judaica»). De acordo com o mesmo dicionário, a origem etimológica de judaico é precisamente a que Ricardo Costa refere, enquanto judia virá do latim judaea, ae, que significava «mulher judia».

Contudo, é curioso, e é de salientar, que judeu esteja atestado nesse dicionário como adjectivo e substantivo e que judia, que é o seu equivalente feminino, apenas surja como substantivo.

Outros dicionários parecem ser mais coerentes neste aspecto. No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, a primeira acepção de judia é a de adjectivo e o seu significado é este: «da Judeia». Outros dicionários, como o da Texto Editora (www.priberam.pt) e o da Academia das Ciências de Lisboa, atestam igualmente que o termo judia pode ser usado como adjectivo ou substantivo e que corresponde ao feminino de judeu. Ora, isto implica que judia pode perfeitamente ser empregado, como referiu o consulente, como sinónimo de judaica.

Assim sendo, a crítica que se faz a Mário Crespo, por ter feito (erradamente) «uma analogia entre o substantivo gentílico e o adjectivo correspondente» parece-me despropositada.

 Cf.