Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em que situação podemos dizer «ladeado por...»?

Resposta:

O verbo ladear significa «acompanhar ao lado; estar ao lado de; flanquear». Assim, podemos utilizar «ladeado por...» no seguinte contexto: «O assaltante foi ladeado por dois polícias.»

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem se existe derivação irregular e, se existe, em que consiste. É que nos programas de ensino aparece um conteúdo sobre o processo de formação de palavras, e mais concretamente a derivação irregular, e não sei se se estará a falar de derivação imprópria ou não.

Obrigado!

Resposta:

Na área da formação de palavras, verificamos que existem lacunas e preferências que são permitidas e impostas pela língua. Isto é, uma formação possível segundo um determinado modelo pode ser inaceitável na norma da língua. Por exemplo, no caso dos verbos factitivos em -tar, é possível a formação de substantivos em -ção (ornamentar-ornamentação; fragmentar-fragmentação; sedimentar-sedimentação), mas em aumentar atormentar ou comentar, já não é possível aplicar tal processo. Isto para dizer que há certos fa{#c|}tos na formação de palavras que escapam a qualquer previsão ou regularidade. Veja-se por exemplo o caso da formação de adjectivos a partir de nomes de pessoas: quixotesco (de Quixote) ou cidesco (de Cid). Porém, se tentarmos fazer o mesmo exercício com Soares («governo *soaresco»), Gonçalves («período *gonçalvesco») ou Salazar («época *salazaresca»), verificamos que estamos perante uma impossibilidade, optando preferencialmente o português pelo afixo -ista ou, no que se refere a Salazar, também por -ento. Nesta linha de raciocínio, podemos ainda olhar para o caso dos aumentativos irregulares homenzarrão (...

Pergunta:

A expressão "macmaníaco", que encontrei numa crónica de Miguel Esteves Cardoso, é um neologismo. "Mac" pode ser considerado um prefixo, ou a abreviatura de Macintosh, que se aglutina à palavra maníaco? Que processo de formação de palavras poderemos considerar aqui?

Resposta:

A palavra macmaníaco surge como uma tradução directa do termo inglês macmaniac, que, apesar de não constar de nenhum dicionário, tem vindo a ser utilizada de forma contagiante pelos cibernautas, sobretudo em blogues e fóruns especializados em informática, e que pretende significar, como facilmente se pode constatar, «aquele que tem interesse apaixonado e exclusivo pelos computadores e respectivos produtos associados à marca Mac». De facto, e como é evidente, esta palavra está intimamente relacionada com a famosa linha de computadores pessoais, desenhada, desenvolvida e vendida pela multinacional Apple Inc., a que se chamou Macintosh ou Mac. Diga-se aliás que o termo em análise surge no próprio fórum de debate criado pela Apple, no respectivo sítio.

Posto isto, podemos concluir que macmaníaco é uma palavra criada a partir do elemento de composição pospositivo, formador de adjectivos e agentes de -mania (loucura, demência), -maníaco (cf. Dicionário eletrônico Houaiss de língua portuguesa), ao qual se associa o nome Mac. São aliás bastante comuns as palavras registadas formadas a partir do referido elemento de composição: ex.: megalomaníaco, bibliomaníaco, cleptomaníaco, hidromaníaco. Assim, tal como, por exemplo, megalomaníaco significa aquele «que aprecia só coisas de grande porte» (Infopédia, Porto Editora), um macmaníaco significará aquele «que aprecia só computadores e/ou produtos associados à marca Mac».

Valerá ainda a pena dizer que Mac parece ter passado de mero diminutivo (como o consulente salienta na questão que nos aprese...

Pergunta:

Sou aluno do 6.º ano e tenho uma dúvida. Gostaria de contar com a vossa ajuda.

«O ar estava azul, e o mar, tão morno, que apetecia andar, andar até ao Sol.»

Qual o recurso expressivo?

Resposta:

Neste excerto, são usados três recursos estilísticos distintos:

1 – Sinestesia: figura de retórica que permite a transposição de sensações, ou seja, a atribuição de determinadas impressões sensoriais a um sentido que não lhes corresponde. Neste caso, o ar é de certa forma associado ao mar e passa também ele (o ar) a poder ser visualizado, através da cor azul, o que ajuda a acentuar a sua intensidade.

2 – Anadiplose: repetição da última palavra ou expressão de uma oração, frase (ou verso) no início da seguinte. Este processo permite reforçar o valor semântico do termo repetido, acabando por gerar um efeito de eco. Ex,: «[...] passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador» (Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes, cap. V). No que se refere ao caso concreto da frase que aqui nos traz, a repetição do verbo andar dá-nos a ideia da enorme vontade que o sujeito enunciador tem de ver e sentir o Sol e dos consequentes sacrifícios que está disposto a fazer para o conseguir.

3 – Hipérbole: Figura de pensamento que consiste na amplificação crescente, por excesso ou por defeito, de um determinado objecto, sentimento ou ideia, de forma a provocar no leitor ou ouvinte uma estranheza para além da realidade credível. Assim, nesta frase, através do recurso à hipérbole — «andar até ao Sol», acção manifestamente impossível de levar a cabo no mundo e na realidade em que vivemos —, o enunciador partilha com o leitor o fortíssimo desejo que tem de ver e sentir o Sol.

Pergunta:

Consulto frequentemente o vosso sítio e desde já vos felicito pelo excelente trabalho.

Tenho um problema com a utilização do deve (opcional) ou tem de (obrigatório).

Uma norma (conjunto de regras a seguir) é (ou devia ser) escrita utilizando o princípio da clareza (linguagem clara e compreensível para todas as pessoas).

Sendo a frase:

«A entidade X deve escolher o método A ou o método B e deve aplicar o método escolhido no quadro 1.»

Neste caso, o «deve aplicar» está correcto, ou utiliza-se tem de ou mesmo o verbo na forma activa?

Outro caso:

«A entidade X deve garantir os items x, y e z.»

Se é uma norma (regra a seguir) obrigatória, o deve na frase torna a acção opcional.

Neste caso, penso que deveria ser «A entidade X têm de garantir...» ou «garante» de forma a a acção ou situação ser obrigatória.

Quando uma norma é transposta a aviso na legislação portuguesa através do princípio da legalidade (onde a norma fica submetida à lei), contendo o mesmo texto (com deve), como deve ser interpretada?

Este problema é claro na língua inglesa, onde shall e must são claramente opcional e obrigatório, respectivamente.

Mas a tradução de normas EN para PT origina muitas situações idêntic...

Resposta:

Os verbos auxiliares modais poder, dever e ter + de (ou ter + que) são utilizados para exprimir, respectivamente, a possibilidade, a probabilidade e a obrigatoriedade.

Porém, o verbo dever, em determinados contextos, é utilizado como expressão de obrigatoriedade, nomeadamente quando usado em documentos de carácter normativo (decretos-leis, normas...), pois pressupõe-se que esteja implícita a obrigatoriedade do cumprimento do que neles está enunciado. Ex: «Qualquer comunicação que, directa ou indirectamente, vise promover a prestação de serviços abrangidos pelo presente decreto-lei deve identificar de forma expressa e destacada o seu carácter de comunicação comercial» (Diário da República, 1.ª série – n.º 48 – 10 de Março de 2009, p. 1603). Neste tipo de documentos, quando se pretende veicular a ideia da não obrigatoriedade do exposto, opta-se pelo uso do verbo auxiliar modal poder. Ex. «Por resolução do Conselho de Ministros, pode ser centralizado na Direcção-Geral da Administração Pública o recrutamento para categorias de ingresso» (Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho).

Deste modo, e nos casos concretos que refere, o verbo dever assume o mesmo valor de ter + de, isto é, de obrigatoriedade.