Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«A se admitir ser verdade o que dizes, nada mais me resta fazer.»

Tal frase extraí de carta enviada por uma amiga. Questionei-a quanto à construção «a se admitir», tendo ela alegado que a lera em livro de bom autor de cujo nome, porém, não se lembrava. Estaria correta tal forma de construção? E quanto à forma «tendo ela alegado» que utilizei na pergunta, estaria correta?

Desde já agradeço a atenção.

Resposta:

Ainda que não seja muito comum, julgo que a construção «a se admitir» é aceitável no contexto em análise, podendo a mesma ser parafraseável, por exemplo, por «A partir do momento em que se admite que é verdade o que dizes, nada mais me resta fazer», «Se se admite que é verdade o que dizes, nada mais me resta fazer» ou «Admitindo-se que é verdade o que dizes, nada mais me resta fazer». No fundo, constatamos que se trata de uma oração adverbial com valor condicional, como se pode confirmar pelas paráfrases propostas.

Salvaguardadas as devidas distâncias tipológicas, repare-se que este é um tipo de formulação detetável, por exemplo, em textos de natureza jurídica, ex.: «A vistoria, de natureza pericial, de danos causados em imóvel, quando encerrada a locação, não pode ser erigida em prova única a se admitir, sem negar vigência ao art. 136 do CC, que contempla os meios de prova dos atos jurídicos, quando não prevista em lei forma especial» (corpus CETENFolha).

Refira-se, porém, que, no quadro do português europeu, a opção mais comum seria talvez «a admitir-se...», e não «a se admitir...», preferindo-se, portanto, a ênclise (isto é, a colocação do pronome à direita do verbo: cf. Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 312). No entanto, à semelhança do que acontece noutros contextos, no português do Brasil, como se pode constatar através da leitura do exemplo transcrito, o recurso à próclise (colocação do pronome à esquerda do verbo) parece ser aceitável no enquadramento que nos encontramos aqui a analisar.    

A construção «tendo ela alegado» está correta, é bastante comum e não levanta qualq...

Pergunta:

Gostaria de saber sobre a regência «paralelo para» que aparece no texto da obra O Abolicionista, de Joaquim Nabuco:

«Nem a esperança, nem a dor, nem as lágrimas o são. Por isso não há paralelo algum para esse ente infeliz (o escravo), que não é uma abstração nem uma criação da fantasia dos que se compadecem dele, mas que existe em milhares e centenas de milhares de casos, cujas histórias podiam ser contadas cada uma com piores detalhes.»

O Dicionário de Regência Nominal do Francisco Fernandes prevê a seguinte regência:

paraleloa/com/de/entre.

Grata.

Resposta:

Apesar de não ser muito comum a palavra paralelo surgir acompanhada pela preposição para, e de eu não encontrar nenhuma formulação do género nos instrumentos linguísticos de referência consultados, penso que é aceitável fazê-lo, pois, por exemplo, no caso citado pela consulente, podemos propor a seguinte paráfrase: «Por isso não há nada comparável [que se compare] a esse ente infeliz (o escravo).»

Seguindo a linha de raciocínio exposta, atente-se, por exemplo, nestas ocorrências registadas nos corpora CETEMPúblico e CETENFolha (parêntesis rectos meus) : «Um olhar definitivamente alternativo sobre Lisboa, uma banda sonora sem paralelo para [sem comparação/única em] Portugal»; «Quem viu a anterior peça Kolbebazar reconhecerá em Carol.la o mesmo rigoroso e fluido trabalho coreográfico, o mesmo cuidadoso e reflectido trabalho de composição, mas não terá paralelo para [comparação com] a poética apaixonante que envolve esta última dança»; «Só nas abstracções numéricas de um e nas simetrias da chamada construção em arco de outro se encontra paralelo para [(ponto de) comparação com] a originalíssima estrutura da Sétima Sinfonia».

No fundo, em todas as ocorrências sugeridas (incluindo a da consulente), a preposição para remete-nos para a ideia de relativamente a/no que diz respeito a/com relação a (cf. Dicionário Houaiss e Aurélio). Ex.: «Por isso não há paralelo algum relativamente a...

Pergunta:

Gostaria de saber o que significa exatamente a palavra testemunho nos seguintes contextos:

1) «A organização por capítulos é a que consta dos testemunhos 20 (13)V e 21 (14)V por se considerar a mais completa.»

2) «Os testemunhos 20 (13)V e 21 (14)V têm, ao topo, a indicação "Melville, first tale".»

3) «Cada capítulo é precedido do pequeno resumo que consta dos testemunhos 23(5) Q-1 e 1v., pois facilita a compreensão do enredo.»

É substituível simplesmente por documento, ou tem algum valor semântico específico no campo da investigação de textos literários?

Obrigada.

Resposta:

No Glossário de Crítica Textual, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH), testemunho encontra-se definido da seguinte forma: «manuscritos ou impressos que transmitem a obra. Designa o exemplar de um texto com todas as características próprias: suportes, lições, variantes».

Pelo que consigo perceber dos exemplos transcritos pela consulente, será exa{#c|}tamente este o enquadramento que se deve dar ao termo testemunho, nos contextos em análise.   

  

Pergunta:

O socioleto se distingue do dialeto por qual razão?

Resposta:

Maria Helena Mira Mateus e outros, na Gramática da Língua Portuguesa (2003), p. 34, tecem a seguinte reflexão sobre o tema: «os seus diferentes usos [da língua] no espaço e no tempo revelam existência de variação nos diversos módulos da gramática da língua permitindo, assim, em função quer de factores internos quer externos à língua, a caracterização de dialectos regionais, de sociolectos e de idiolectos ou registos individuais». 

Deste modo, idiolecto será, de acordo, por exemplo, com o Dicionário de Termos Linguísticos da Associação de Informação Terminológica, o «sistema linguístico de um indivíduo. Hábitos discursivos de um indivíduo realizados numa variedade específica, num dado espaço de tempo». A Infopédia complementa e especifica esta definição geral, referindo que se trata do «conjunto dos hábitos linguísticos típicos de um determinado indivíduo que contribuem para a sua caracterização linguística pessoal. Conhecimento linguístico individual e sistemático actualizado numa regularidade de utilização de estruturas fonéticas, morfológicas, sintácticas e discursivas. O idiolecto enquadra-se na variação individual da língua. É muitas vezes interpretado como estilo. Um exemplo de idiolecto no domínio literário é a expressão "chique a valer" que caracterizava a personagem Dâmaso, na célebre obra queirosiana Os Maias. A utilização de galicismos ou anglicismos pode também ser um há...

Pergunta:

Está correto o verbo interagir reger a preposição com?

Não seria redundância?

Resposta:

Interagir significa «exercer ação mútua (com algo), afetando ou influenciando o desenvolvimento ou a condição um do outro; ter comunicação, diálogo (com outrem) em dada situação (familiar, profissional etc.) comunicar-se; relacionar-se» (Dicionário Houaiss).

Assim sendo, a formulação interagir + com está correcta, ex.: «alguns genes de bactérias interagem com os genes de várias plantas» (Dicionário Houaiss).

Agora, a questão apresentada pelo consulente tem como pano de fundo a ideia de que o sentido do verbo interagir se esgota no sujeito que interage, isto é, que a acção de interagir estará reservada apenas aos elementos que constituem o sujeito dessa mesma acção, e que só entre eles poderá, portanto, haver interacção. Deste modo, e seguindo esta linha de pensamento, de facto, o referido verbo apenas poderia ser usado em contextos do tipo «Os alunos interagiram de forma muito interessante».

Contudo, na verdade, a utilização do verbo interagir não se esgota em cenários deste tipo, pois à própria frase por mim sugerida podemos facilmente acrescentar, por exemplo, um complemento oblíquo, abrindo assim o caminho para uma outra perspectiva sintáctico-semântica: «Os alunos interagiram de forma muito interessante com os professores.» Assim, enquanto, no primeiro caso, supomos que, em princípio, os alunos terão interagido apenas entre si, no segundo, eles interagiram com o professor, e, provavelmente, também entre si. A redundância de que fala o consulente poderia eventualmente ser descortinada na seguinte proposta de construção, ainda da mesma frase: «Os alunos