Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Devemos usar diferente ou diferentemente na frase: "Diferente/ Diferentemente das outras raças, este cão não enxerga o homem como uma ameaça."? Por quê?

Resposta:

Dependendo do que pretende dizer, poderá usar uma ou a outra expressão.

Se quiser dizer que é a actuação do cão que é diferente, deverá usar o advérbio (diferentemente), que é um modificador do verbo. Esse cão, que pertence a uma determinada raça, actua diferentemente (= de forma diferente) dos cães de outras raças.

Se, no entanto, quiser dizer que esse cão “não enxerga o homem como uma ameaça” porque é diferente de outros, no sentido de “porque diferente, este cão não enxerga...”, então poderá usar o adjectivo em vez do advérbio.

O advérbio (diferentemente) refere-se à actuação do cão (não enxerga o homem como uma ameaça), enquanto o adjectivo (diferente) se refere ao cão.
Só uma nota final: semanticamente, a frase não é totalmente clara. Ao referir “outras raças”, esperar-se-ia que de seguida se dissesse uma raça de cães, como por exemplo, “Diferentemente de outras raças, o pastor alemão...”. Ao referir “cão”, então seria lógico contrapor-se a outros animais, podendo a frase iniciar-se assim: “Diferentemente de outros animais, o cão...”

Pergunta:

Na frase "Eu rio-me.", qual é a função sintáctica de me?

Resposta:

O “me”, neste caso, é um pronome reflexo que não constitui termo da oração, sendo apenas um pronome de realce ou expletivo.

Na maior parte das situações, o pronome reflexo tem a função de complemento directo (ex.: “Ele lava-se.”).

Há, no entanto, duas situações em que esse pronome não desempenha uma função sintáctica como termo da oração:

1.ª – quando se junta a verbos que indicam sentimento (ex.: admirar-se, arrepender-se, atrever-se, esquecer-se, indignar-se, lembrar-se, orgulhar-se, queixar-se), em que o sentido de reflexividade se perde e o pronome passa a fazer parte integrante do verbo, sem classificação especial;

2.ª – quando se junta a verbos que referem movimento ou atitudes da pessoa por meio do próprio corpo (ex.: ir-se, partir-se, rir-se, sorrir-se), em que esse pronome se designa de pronome de realce ou expletivo.

Pergunta:

Num texto sobre Portugal, vê-se a seguinte frase:

"Arquitectura românica com aportações renascentistas e barrocas".

Agradecia se me davam o significado de "aportações", visto não encontrar nos dicionários.

Resposta:

Ainda bem que não encontra tal termo nos dicionários no sentido em que está utilizado nesta frase, pois não se trata de palavra portuguesa. Trata-se de uma invenção, de um galicismo, proveniente de “apporter”, que significa trazer, levar, aplicar, empregar, e de “apport”, que significa contributo, achega, contribuição, subsídio.

Na frase que apresenta, esse termo está utilizado no sentido de algo que foi trazido, que foi aplicado posteriormente. Poderia ser utilizado, em vez desse, um dos seguintes termos: contributo, contribuição, acrescento.

Note que há dicionários que registam “aportação” no sentido de “acto ou efeito de aportar, chegada de um navio ao porto”.

Pergunta:

Se o plural de pôr-do-sol é pores-do-sol, por que fora-da-lei é invariável?

Na gramática de Napoleão Mendes de Almeida, parágrafo 231-5, temos: "Quando substantivada, uma palavra pertencente a qualquer classe flexiona normalmente":

"Sem senões nem talvezes".

"Ouvimos os prós e os contras".

Resposta:

Fora-da-lei é palavra invariável porque:

a) o 1.º elemento da palavra é originariamente um advérbio, palavra invariável, que permanece no novo termo com esse valor semântico;

b) o 2.º elemento está ligado ao primeiro por preposição, mantendo-se, neste caso, sempre invariável.

Está correcta a regra que enuncia, mas ela não diz respeito a palavras compostas. Na palavra composta o valor de substantivo adquire-se pela conjunção dos dois termos envolventes. Na palavra “fora-da-lei”, o termo “fora” por si só não está substantivado (o substantivo “fora” tem outra acepção: erro, fiasco), é o advérbio que aí temos, e não o substantivo. O substantivo composto é formado pelos dois termos ligados. Repare que na palavra “pôr-do-sol”, o termo “pôr” já está substantivado (o pôr) antes de formar a nova palavra.

Pergunta:

"Penso estar doente": é uma oração absoluta com locução verbal ou um período composto com oração principal e oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo?

Resposta:

Não é consensual o conceito de oração reduzida. Tradicionalmente e genericamente, considera-se que o que caracteriza uma oração é a presença de verbo em forma finita, não constituindo oração o termo em que o verbo surja numa das formas nominais (infinitivo, gerúndio e particípio), sendo este termo considerado uma subunidade da oração em que se integra. No caso que apresenta, “estar doente” seria o complemento directo.

Modernamente, há bons gramáticos brasileiros (como Evanildo Bechara) que consideram orações reduzidas as constituídas por qualquer forma nominal do verbo, desde que apresentem autonomia sintáctica e possam ser substituídas por orações desenvolvidas. É o caso da frase que apresenta - que facilmente se pode transformar em “Penso que estou doente.” -, em que “estar doente” seria uma oração subordinada substantiva reduzida de infinitivo, objectiva directa, pois serve de complemento directo a “penso”.

A existência ou não de locução verbal depende essencialmente do que se pretende dizer. Pode usar-se um verbo auxiliar realmente apenas como mero verbo auxiliar que determina com mais rigor o modo como a acção se realiza (ex.: ter, ter de, haver, ser, começar a, pôr-se a, estar a, estar para, continuar a, tornar a, acabar de, deixar de, poder, dever, etc.), e, neste caso, existe locução verbal, ou podem utilizar-se duas formas verbais, cada uma com a sua autonomia semântica, constituindo dois verbos principais (ex.: custar responder, aconselhar a comprar, declarar ser inocente, etc.).