Inês Araújo Silva - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Araújo Silva
Inês Araújo Silva
673

Mestre em Estudos Clássicos, na vertente de Épica Grega, pela Universidade de Edimburgo (2015) e licenciada em Línguas, Literaturas e Culturas pela Faculdade de Letras (2014). Áreas de interesse incluem a Etimologia, a Linguística Histórica e estudos sobre variação e norma.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Num sistema político em que o poder legislativo está dividido em duas câmaras, diz-se que é "bicameral", ou "bicamaral"?

Resposta:

A forma correta é bicameral (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Objectiva, 2001). Contudo, um sistema bicameral é, de facto, formado por duas câmaras. O termo câmera está atestado em vários dicionários, ou como forma antiga usada no português europeu (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, Lisboa, 2012, de Vasco Botelho do Amaral), ou com duas aceções usadas no Brasil: 1. «máquina de filmar» ou «máquina fotográfica», e 2. «operador de câmara» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001).

No português moderno, tanto brasileiro como europeu, só o termo câmara denota o significado de «assembleia» implícito no conceito de um sistema bicameral. Porque é que se usa, então, o termo bicameral, e não *bicamaral? Historicamente, o termo bicameralismo, cunhado no século XIX (Online Etymology Dictionary), está ligado à evolução do sistema parlamentar em Inglaterra (cf. Bicameralism, Cambridge, 1997, de Tsebelis e Money, pág. 21-24). É possível que a palavra não tenha sofrido alteração fonética em virtude da eufonia do termo e da familiaridade com a forma antiga, câmera, que Vasco Botelho do Amaral, ainda na primeira metade do séc. XX, considerou admissível «pelo facto da sua antiguidade».

 

N. E. (17/03/2022) – A forma bicamaral tem também registo dicionarístico, pelo menos, em duas fontes elaboradas em Portugal: na Infopédia e no dicionário

Pergunta:

Já li e ouvi algumas vezes «rumar a caminho de...». Parece-me claramente uma redundância. Não se deveria dizer apenas «rumar a...». Assim, por exemplo, podemos dizer «rumar a caminho de Lisboa» ou «rumar a Lisboa»?

Resposta:

O verbo rumar seleciona a preposição para (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Editora Objetiva, 2001; Novo Aurélio Século XXI, Nova Fronteira, 1999; Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Texto Editores, 2007; ou Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001). A forma correta será, então, «rumar para Lisboa».

Contudo, a expressão «rumar a» também é aceitável, conforme registam Francisco Fernandes (Dicionário de Verbos e Regimes, São Paulo, Globo, s. d.) e João Andrade Peres e Telmo Móia (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Editorial Caminho, 1995, p. 146); está ainda atestada num número apreciável de textos, como se pode verificar através de uma pesquisa no sítio Corpus do Português. O substantivo rumo é usado na locução «rumo a», equivalente a «em rumo de» (cf. idem), o que pode estar na origem da "confusão" (será ainda confusão, ou um uso consagrado pela prática?). Remeto para a seguinte frase do escritor Mário Cláudio (Peregrinação do Barbabé das Índias, 1998):

«Progressivamente se ia afastando a armada do ancoradouro, a rumar a um norte que ninguém tocara, ou que se abrigava ...

Pergunta:

Pretendo saber se as palavras homem e humano têm a mesma origem, sabendo que derivam respetivamente de homine e humanu. Houve evolução fonética, ou simplesmente são duas palavras diferentes relacionadas semanticamente?

Obrigada.

Resposta:

Para a muito interessante pergunta da consulente não parece haver, infelizmente, uma resposta fácil nem direta.

As palavras homem e humano derivam, respetivamente, dos termos do latim clássico homo (concretamente, do acusativo hominem) e humanus (cf. o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Nova Fronteira, de António Geraldo da Cunha, 1999; ou o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Editora Objetiva, 2001). Os termos apontados pela consulente, provenientes do latim vulgar e, naturalmente, derivados também de homo e humanus, estão mais “próximos” dos nossos e encontram-se registados em várias obras, tal como no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1955), de Antenor Nascentes. Deixando de parte as questões de ordem terminológica, metodológica e ideológica que determinam a preferência pela origem mais antiga ou pela mais direta, verificamos que a ascendência das palavras individuais é um ponto consensual entre os conhecedores da língua.

O mesmo já não acontece no que diz respeito à sua relação etimológica.

No Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine (Klincksieck, 2001), Ernout e...

Pergunta:

Qual o correcto: «ministros nórdicos-africanos», ou «ministros nórdico-africanos»?

Resposta:

A forma gramaticalmente correta é nórdico-africanos, em referência, por exemplo, a uma reunião entre nórdicos e africanos, como atesta a seguinte frase:

«O ministro das Relações Exteriores, Georges Rebelo Pinto Chikoti, desloca-se, dia 26 do corrente mês, a Oslo, Reino da Noruega, para participar na Reunião de Ministros dos Negócios Estrangeiros Nórdico-Africanos» (Angola na reunião de Ministros dos Negócios Estrangeiros Nórdico-AfricanosAngop – Agência Angola Press, 24/05/2016).

Segundo a Nova Gramática do Português Contemporâneo (Figueirinhas, 2002), de Celso Cunha e Lindley Cintra, a regra geral de formação do plural dos adjetivos compostos preceitua que «apenas o último elemento receb[a] a forma do plural» (pág. 253). Exceções de nota incluem surdo-mudo, a que corresponde o plural surdos-mudos, e adjetivos referentes a cores cujo segundo elemento é um substantivo, que são invariáveis, como mostra o exemplo «blusas vermelho-sangue» (colhido da obra de Cunha e Cintra, pág. 253).

Quanto ao significado da expressão em apreço, importa referir que, para designar um conjunto de ministros provenientes do Norte de África, a expressão apropriada é «ministros norte-africanos». O adjetivo nórdico remete exclusivamente para as regiões e habitantes do Norte da Europa (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea<...