Inês Araújo Silva - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Araújo Silva
Inês Araújo Silva
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Mestre em Estudos Clássicos, na vertente de Épica Grega, pela Universidade de Edimburgo (2015) e licenciada em Línguas, Literaturas e Culturas pela Faculdade de Letras (2014). Áreas de interesse incluem a Etimologia, a Linguística Histórica e estudos sobre variação e norma.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Li [aqui] que o nome da Serra Leoa foi dado pelo navegante português Pedro de Cintra, que ao avistar a serra a achou parecida com uma leoa. Acaso esta tese tem alguma veracidade... histórica?

Muito obrigado.

Resposta:

Pedro de Sintra (ou Cintra, na grafia antiga) é, de facto, identificado como o descobridor da Serra Leoa em 1461 ou 1462, mas, segundo as fontes consultadas, o batismo não foi motivado pela forma da serra. Há duas explicações toponomásticas apresentadas por navegadores envolvidos nos Descobrimentos portugueses – um italiano, Luís de Cadamosto (1432-1488), e outro português, Duarte Pacheco Pereira (1460-1533) – que aludem a outras características comuns à serra e à leoa:

– Na obra intitulada Navegação do Capitão Pedro de Cintra, portuguez, escrita por messer Luiz de Cadamosto pode ler-se: «à dita montanha [puseram o nome] de Serra Leôa, e isto pelo grande rugido, que de continuo alli se sente por causa das trovoadas, que ha no seu cume, o qual está sempre cercado de nuvens» (in Collecção de Noticias para a Historia e Geografia das Nações Ultramarinas, que vivem nos Dominios Portuguezes, ou lhes são visinhas, publicada pela Academia Real das Sciencias, Academia Real das Ciências, 1812 tomo II, p. 76);

– Por outro lado, Duarte Pacheco Pereira, na sua obra Esmeraldo de Situ Orbis, escreve: «muytos cuidam que este nome de serra lyoa lhe foy posto por aqui hauer Lyoões, & isto he falso por que Pero de Sintra hum cavalleiro do Infante Dom Anrique que per seu mandado esta terra descobrio por ver huma terra tam aspera e braua lhe poz nome Lyoa & nom per outra causa & isto se nom deue duuidar por que he verdade; por que elle me disse assim» (Imprensa Nacional, 1892, p. 57).

Na minha opinião, é difícil desvalorizar uma tão enfática afirmação de conhe...

Pergunta:

Está correto dizer «de meio-dia» ou «ao meio-dia», seguindo a lógica «de noite» ou «à noite»?

Resposta:

A expressão «de meio-dia» com um sentido semelhante a «de noite» (isto é, enquanto locução adverbial de tempo) não é gramatical. Meio-dia é uma hora (entre as 24 do dia). Como tal, se nos quisermos referir exatamente a esta altura do dia, devemos dizer e escrever «ao meio-dia» (Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara, Nova Fronteira, 2009, p. 379). A noite, por sua vez, é uma parte do dia, tal como a manhã, a tarde e o próprio dia, na sua aceção de complemento da noite. Todos estes substantivos formam, com a preposição de, uma locução adverbial temporal na qual está implícita uma duração, visto serem eles períodos, e não horas exatas. Porém, tarde e noite podem também ligar-se à preposição a, produzindo locuções de sentido semelhante (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001).

Mesmo assim, sobre «de meio-dia», talvez convenha dizer que é a norma culta que não legitima esta expressão. Em certos registos do português do Brasil, observa-se que ela tem uso como evidenciam alguns contextos disponíveis em páginas da Internet (não se trata de «de meio dia», ou seja, «de metade de um dia»)*:

«A chefe Angelita Gonzaga, do restaurante Arimbá, vai preparar na calçada um entrevero no disco de arado, receita da culinária campeira, da região sul do país, a partir de meio-dia» (Folha de S. Paulo).

«De dia, a hora do almoço enche as mesas do beco sujo. As moscas zanzam sobre os pratos, e o calor de meio-dia assola os mendigos que dormem espalhados em folhas de papelão» (Diário de Pernambuco, ...

Pergunta:

Não me parece que haja adjectivo adequado a "clímax". Não concordo com "climático", porque nada tem que ver com "clima". Há quem defenda "climáctico". "Climácico" parece ser o que mais se aproxima do genitivo latino de "climax"; mas não soa bem. "Climáxico" seria bem melhor: aponta claramente para "clímax", soa bem e não deixa dúvidas.

Obrigado.

Resposta:

Para o português europeu, o adjetivo referente a clímax que se encontra dicionarizado é climáctico (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 1998; note-se que a ortografia não foi alterada com o Acordo Ortográfico). Climático está efetiva e inequivocamente relacionado com o termo clima – não com clímax. Os dois outros termos apresentados pelo consulente, "climácico" e "climáxico", seriam candidatos válidos ao estatuto em causa, precisamente devido aos argumentos explicitados. Vale ainda a pena notar que, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Objetiva, 2001), estão atestados os seguintes elementos de composição: clima(t)- referente a clima, e climac- referente a clímax, o que parece ser mais um argumento a favor de "climácico". É certo que há outras palavras etimologicamente relacionadas com clímax que se aproximam ortograficamente de climáctico, tais como climactério («período da vida vulgarmente considerado como idade crítica», Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 1998); no entanto, o uso esparso e recente deste adjetivo leva-me a considerar ainda uma outra hipótese: será que a forma climáctico se cristalizou no português por influência do seu equivalente em Inglês, isto é, climactic? Deixo em aberto esta questão, que me parece, no entanto, pertinente, à luz da permeabilidade linguística a que o português se tem visto sujeito. Em última instância, apesar da proximidade de "climácico" ao genitivo latino climacis e da clareza do termo "climáxico", o adjetivo referente a clímax terá de ser, do meu ponto de vista, o que já está dicionarizado: climáctico.

N.E. — Depois do

Pergunta:

Descobri recentemente que o título da obra de Homero, Odisseia, se refere à forma grega do nome do herói da obra. Li entretanto que Ulisses é forma latina. É verdade? Porque é que em português se usam origens diferentes para o nome do livro e para o nome do seu herói? Existe em português a forma grega do nome Ulisses?

Obrigado.

Resposta:

Os termos portugueses Ulisses e Odisseia têm ambos origem latina – respetivamente, Ulysses e Odyssea.

Ulysses é a versão latina do grego Odusseus (Ὀδυσσεύς), o herói que dá nome à Odisseia de Homero. Odisseia, por outro lado, chegou-nos a partir da transliteração para latim do título grego (Ὀδύσσεια). Isto significa que, ao contrário de Odyssea, Ulysses terá sofrido transformações fonéticas, nomeadamente de Udysses para Ulysses (An Etymological Dictionary of the Latin Language, A. J. Valpy, 1828, de Francis Valpy). Outra hipótese para a origem do termo latino Ulysses é uma ascendência não-jónica (o principal dialeto grego dos poemas homéricos), já que versões dialetais não-jónicas do nome do herói incluem Olitteus, Olusseus, Olisseus, entre outras (cf. o artigo “The Etymology of Ὀδυσσεύς”, The American Journal of Philology, vol. 27, no.1, de G. M. Bolling, pág. 65-67).

Em suma: Ulisses é a versão latina do herói grego, e uma figura da mitologia romana por direito próprio, enquanto o título do poema que o tornou famoso entrou no latim como transliteração do original. Finalmente, o uso consagrou Ulisses como herói da Odisseia porque a influência latina tem primazia sobre a grega na cultura e língua portuguesas.

Pergunta:

Gostaria de saber, se possível, qual é a origem da expressão «sabe muito, mas anda a pé»: de que região/local, época e qual o significado original.

Obrigada desde já, e continuação de um bom trabalho.

Resposta:

A expressão «sabes muito, mas andas a pé» tem um significado equivalente a «sabes muito, mas a mim não me enganas» (Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, Dom Quixote, 2000, de Guilherme Augusto Simões; cf. também o Dicionário de Expressões Correntes, Editorial Notícias, 1999, de Orlando Neves). A expressão em apreço é, porém, enriquecida pela metáfora que transforma o «andar a pé» num símbolo de insucesso, ou de falta de sucesso, com o qual é possível desmascarar o discurso doloso de uma pessoa cujas palavras não casam com as circunstâncias. As obras consultadas não forneceram mais dados para além do significado – uma situação infelizmente muito comum no que toca a este tipo de investigação.

Outras fontes consultadas: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Objectiva, 2001; Novo Aurélio Século XXI, Nova Fronteira, 1999; Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001; Novos Dicionários de Expressões I...