Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

De acordo com o Dicionário Terminológico, como classifico as duas orações presentes na frase «Vi um peixe no lago, todavia achei-o muito pequenino»?

Resposta:

Segundo o Dicionário Terminológico, não estamos perante um caso de frase complexa, o que implicaria a presença de orações, mas de duas frases simples.

Pode parecer estranha esta classificação, bastante diferente da da gramática tradicional, que enquadrava todavia, contudo, porém, no entanto e entretanto, a par de mas, como conjunções coordenativas adversativas (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002 , p. 576), a partir do argumento de «que ligam dois termos ou duas orações de igual função, acrescentando-lhes, porém, uma ideia de contraste» (idem), o que levava a que tais conjunções introduzissem uma oração coordenada adversativa, que era distinta da principal. Portanto, porque se partia do pressuposto de que as frases ligadas por coordenação (do mesmo modo da subordinação) eram orações, a presença de mas, porém, todavia, contudo, no entanto e entretanto numa frase correspondia à classificação de oração coordenada adversativa.

A questão começou a levantar-se com a aplicação da nova terminologia linguística, que é prevista pelo Dicionário Terminológico (DT), em que os conceitos de frase simples e de frase complexa estão intimamente ligados aos critérios de coordenação e de subordinação, distinguindo a coordenação por ocorrer em parataxe (ou seja, com frases independentes, que não dependem sintaticamente umas das outras, mas ao mesmo nível sintático) do processso de subordinação, em hipotaxe (em que as frases dependem umas das outras).

...

Pergunta:

Nas respostas às questões A grafia da expressão «única e exclusivamente» e «Cantar afinado», ou «cantar afinadamente»?, podemos considerar que, em retórica, estas expressões exemplificam a figura da enálage, pela substituição dos advérbios por adjetivos?

Encontrei em Cruz e Souza (Prodígio) estes versos:

A Desventura mais sanguinolenta
Sobre teus ombros impiedosa desça, [impiedosamente]
Seja a treva mais funda e mais espessa...

Resposta:

Em primeiro lugar, devemos ter em conta que este tipo de figura de estilo/linguagem é, geralmente, usada intencionalmente por um sujeito poético ou por um narrador em texto literário para criar  determinada imagem e sugerir outros sentidos que se esbateriam com a palavra correta.

Ora, estas frases são do uso comum, fugindo a segunda à norma da língua-padrão. Não estando integradas num texto, não nos parece que tenha havido qualquer intenção do emissor em alterar o advérbio pelo adjetivo com determinada finalidade.

Há, de facto, a troca de classe de palavras, o que nos poderia levar a pensar na possível presença de enálage (do gr. enallage), a «figura que consiste na troca de classe gramatical, género, número, caso, pessoa, modo ou voz de uma palavra por outra classe, género, número, etc. (Sebastião Cherubim, Dicionário de Figuras de Linguagem, São Paulo, Liv. Pioneira Editora, 1973, p. 31). Mas que valor expressivo é que o adjetivo afinado sugere na frase «cantar afinado»?

Pergunta:

Qual seria o substantivo correspondente ao adjetivo raso?

Resposta:

Correspondentes ao adjetivo raso, há três nomes/substantivos atestados pelos dicionários e vocabulários ortográficos — arrasamento, rasadura e raso1 (adj. e n. m.) —, o primeiro relacionado com o verbo arrasar, e os outros, com o verbo rasar.

O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2010) e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), registam os dois substantivos:

arrasamento (nome masculino, «de arrasar + sufixo -mento») para designar «ato ou efeito de arrasar, destruir, demolir», significando arrasar «tornar ou ficar raso, plano ou liso», tendo, naturalmente, o adejtivo raso o valor/sentido de «que está arrasado, destruído». Exemplo: «As árvores, com os galhos quebrados, davam uma triste impressão de derrocada e arrasamento.»

raso (nome masculino, «do latim rasus, particípio passado do verbo radere, "raspar, rasar"») para designar «terreno plano; campo; planície». No Brasil, este substantivo designa, também, «lugar onde a água é pouco profunda, onde se pode alcançar o fundo com os pés» e «mato baixo no qual árvores e arbustos se emaranham». Exemplo: «Exercitou-se no raso» (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

Pergunta:

Qual a separação silábica correta da palavra pardais?

Resposta:

A palavra pardais tem duas sílabas: par e dais

Repare-se que, em «dais», estamos em presença de um ditongo decrescente (ai), o que implica que não se faça a separação das duas vogais - norma prevista pela gramática tradicional (José Nunes de Figueiredo e Alberto Ferreira, Compêndio de Gramáica Portuguesa, p. ) e  que se mantém como regra no novo Acordo Ortográfico, na Base XX)

Nota: Para as dúvidas sobre divisão silábica e acentuação, aconselha-se a consulta do Dicionário de Divisão Silábica, um dos recursos disponíveis do Portal da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Sou professora de 1.º ciclo e surgiu uma dúvida num texto. Não sei se se trata de um narrador participante ou não participante. Passo a transcrever:

Decididamente, o meu amigo Inocêncio, com o seu espírito fraco e facilmente influenciável por tudo e por todos, há de acabar por acabar mal... Ora imaginem para o que lhe deu: sentindo-se ligeiramente indisposto foi a conselho da esposa e pela primeira vez na sua vida ao médico.

— Todo o seu mal deriva do pâncreas!

— De quem, doutor?— inquiriu alarmado o Inocêncio...

O texto continua sempre na 3.ª pessoa do singular. Mas, como começa na 1.ª pessoa do singular, surgiu a dúvida.

Resposta:

Este narrador de 1.ª pessoa não é participante na ação narrada, mas não deixa de nos dar a sua opinião sobre a personagem nem de no-la caracterizar («com o seu espírito fraco e facilmente influenciável por tudo e por todos, há de acabar por acabar mal...»), mostrando que a conhece bem. Não é, portanto, um narrador participante, mas um narrador interventivo (porque exprime a sua opinião) e omnisciente (porque sabe tudo o que se passou e até prevê o futuro). Estando fora da ação, não deixa de intervir, mas no âmbito do discurso narrativo.

No entanto, importa recordar que nas classificações apresentadas se estão a focar dois domínios da classificação do narrador: quanto à presença — narrador participante (autodiegético e homodiegético) e não participante (heterodiegético) — e quanto à ciência/saber (omnisciente, de focalização interna e externa e narrador interventivo). Trata-se, pois, de tipos de narrador — por um lado, é um narrador não participante (a nível da presença) e, por outro, é um narrador omnisciente e interventivo (ciência/saber) — de domínios diferentes.

Nota: De qualquer forma, é de referir que estes conceitos (relativos à ciência do narrador — omnisciente, de focalização interna e externa, assim como o narrador interventivo) são demasiado complexos para o 1.º ciclo do ensino básico, razão pela qual se deve prestar atenção aos conteúdos indicados no respetivo programa. Por isso, aconselha-se a que se siga rigorosamente a terminologia aí apresentada. Se a classificação de narrador participante e não participar fizer parte do programa, poder-se-á explicar esses conceitos, relacionando-se a participação com a presença (participante) e a ausência (não participante) do narrador na ação, lembrando que um narrador participante pode ter vários papéis: personagem principal, secundária, figurante e/ou, até mesmo, ser um mero espetador.