Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na qualidade de encarregada de educação, venho colocar uma dúvida, embora acabe de ter conhecimento que o Ciberdúvidas se encontra interrompido; no excerto que se segue, como se classifica a oração sublinhada («Porque logo a filha revelou espíritos por de mais alevantados...»)?

«Os próprios pais de Amância o acharam; mas sem se atreverem a tentar qualquer pressão sobre o espírito da filha. Porque logo a filha revelou espíritos por de mais alevantados na filha de um modesto amanuense, declarando não corresponder Domingos ao seu "ideal".»

José Régio, «Os Namorados de Amância», in Contos (excerto)

Resposta:

Antes de se entrar propriamente na classificação das orações, importa referir que as mesmas pertencem a um texto literário que, pelo facto de usufrir da licença poética, a pontuação e a estrutura do discurso desse parágrafo revelam precisamente a liberdade de construção. Não é, portanto, por acaso que o narrador inicia uma frase com «Porque logo a filha revelou espíritos por de mais alevantados na filha de um modesto amanuense», marcando o peso do seu valor (em relação à declaração de Amância), quando esta oração  está, também, intimamente ligada à frase anterior «Os próprios pais de Amância o acharam; mas sem se atreverem a tentar qualquer pressão sobre o espírito da filha.»

Se tratasse de um texto não literário, esse parágrafo poderia estar construído desta forma: «Os próprios pais de Amância o acharam; [ou ,] mas sem se atreverem a tentar qualquer pressão sobre o espírito da filha, porque logo a filha revelou espíritos por de mais alevantados na filha de um modesto amanuense, declarando não corresponder Domingos ao seu "ideal".»

Desta forma, não haveria dúvidas sobre a divisão e classificação das orações:

1.ª - Os próprios pais de Amância o acharam - oração subordinante;

2.ª - mas sem se atreverem a tentar qualquer pressão sobre o espírito da filha - oração coordenada adversativa;

3.ª - porque logo a filha revelou espíritos por de mais alevantados na filha de um modesto amanuense - oração subordinada (adverbial) causal;

4.ª - declarando não corresponder Domingos ao seu "ideal" - oração subordinada reduzida (não finita) de gerúndio.

No entanto, encontrando-se a abrir uma frase, poder-se-á colocar a dúvida sobre a não presença...

Pergunta:

Qual o nome que se dá à junção (na oralidade) de duas ou mais letras iguais, de palavras diferentes, quando colocadas umas a seguir às outras?

Por exemplo, na letra de uma música (a exemplo do que se passa em poesia), em casos como «repara agora» ou «esteja a conduzir»?, em que existe a mesma vogal no final de uma palavra e no início de outra(s)?

Resposta:

«O ritmo é o elemento essencial do verso» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 666) e, quer se trate de uma poesia (texto literário), quer se trate da letra de uma música, carateriza-se por ser «o período rítmico que se agrupa em séries numa composição poética [e musical]» (idem).

Ora, «a melodia do verso exige que as palavras venham ligadas umas às outras» (idem, p. 667), o que implica que a fronteira das sílabas se faça pela «leitura, numa só emissão de voz, da vogal final de uma palavra com a vogal inicial da palavra seguinte», contraindo numa sílaba uma ou mais vogais em contacto.

Nos casos que nos apresenta — «repara agora» e «esteja a acontecer» —, em que a vogal final da primeira palavra é igual à das seguintes  [«repara agora» e «esteja a acontecer»], funde-se com elas numa só [«re /pa / ra /go /ra» e «es/ te / ja /con/ te/ cer». Trata-se, portanto, de um fenómemo de crase.

Pergunta:

Uma expressão muito comum no Brasil, «ontem cheguei cedo em casa», que em Portugal se dirá «cheguei cedo a casa», pode considerar-se correcta?

Resposta:

De facto, enquanto verbo de movimento, o complemento (que indica o espaço/lugar) do verbo chegar deve iniciar-se com a preposição a ou até:

«Ele chegou a casa.»

«Eles já chegaram a Lisboa.»

«Tu chegaste até aqui.»

«A nossa fronteira chega à Bolívia.»

No entanto, Celso Luft (Dicionário Prático de Regência Verbal, São Paulo, Edição Ática, 2003, p. 116) e Maria Manuela Moura Neves (Guia de Uso do Português – Confrontando regras e usos, São Paulo, UNESP, 2003, p. 179) alertam-nos para a particularidade do uso da preposição em neste caso específico: «No Brasil, entretanto, usa-se muito a preposição em (exclusiva diante de casa/lar: chegar em casa, e não chegar a casa.»

O uso desta preposição é explicado «por se considerar o estado e o repouso (lugar onde)» (Luft) em vez de movimento ligado à «preposição a, que marca o ponto de chegada (com destaque para o movimento)» (Manuela Moura Neves), o que leva a que alguns gramáticos «tolerem o chegar em casa, na língua escrita» (Luft). Apesar desta informação, Celso Luft defende que, «mesmo assim, em texto escrito culto formal, melhor se ajusta o chegar a».

Pergunta:

Estou a escrever uma tese na área da biologia e tenho dúvidas na utilização da palavra zonação, uma vez que não a encontrei em nenhum dicionário de Portugal.

A frase é esta: «Nas cavidades naturais observa-se uma zonação gradual relativa à profundidade.»

Haverá algum termo mais próprio na nossa língua?

Resposta:

A bibliografia pesquisada abona as seguintes formas:

- zonamento (Vocabulário Ortográfico do Português, do ILTEC; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2009; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010; Dicionário Priberam), a forma de que encontrámos mais registos, como  «forma nominal de zonar» (de zonar + -mento), usada para designar «ato ou efeito de zonar;
« divisão em zonas; divisão e organização de uma área ou de um território
em zonas mais ou menos homogéneas, de acordo com as suas
características próprias (ecológicas, económicas, sociais, políticas,
etc.)»; «divisão ou distribuição de uma área em zonas
individuais (ex.: mapa de zonamento da exposição; zonamento acústico):

- zoneamento (Vocabulário Ortográfico do Português, ob. cit.; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2009; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, ob. cit.; Dicionário Priberam; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira d...

Pergunta:

Creio que é pela forma "forte" como no Brasil se pronunciam as vogais, incluindo na última sílaba, que ambas as formas da expressão «todo o mundo», que em Portugal leva o artigo definido o e no Brasil se escreve simplesmente «todo mundo», soam aos nossos ouvidos de forma quase idêntica.

De qualquer forma, é ou não necessário o uso desse artigo definido?

Resposta:

A expressão «todo o mundo» — derivada, decerto, da expressão francesa «tout le monde» —, típica no Brasil, também foi usada pelo primeiro dramaturgo português, Gil Vicente, no Auto da Lusitânia (em 1531), como nome de uma das personagens principais, que, por sua vez, dialoga com outra (antagónica): Todo o Mundo e Ninguém.

A forma (mais correta) correta tem o artigo/determinante definido — «todo o mundo1» (sinónima de «todos, todas as pessoas, toda a gente», tal como a regista o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 2729) — e corresponde à expressão «toda a gente», de uso corrente em Portugal. Como o termo mundo é um substantivo/nome, tal como gente, é de regra a ocorrência do artigo definido [o mundo; a gente] a preceder cada uma dessas palavras.

No entanto, o Dicionário Houaiss (de 2009) regista (p. 1331), também, a expressão «todo (o) mundo» (sem artigo definido) com duas aceções:

1. as pessoas todas (tomadas indefinidamente). Exemplos:

Todo (o) mundo conhece esse artista.

Todo (o) mundo de vez em quando pensa na morte.

2. todas as pessoas (a respeito das quais se sabe, se tratou antes. Ex.:

Já chegou todo (o) mundo, podemos começar a reunião.

Nota: A palavra mundo, para além de significar «conjunto de tudo o que existe», «Universo; parte do Universo e os seres que nele habitam», «Terra», «planeta ou sistema de planetas», «...