Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Deve-se pronunciar: "mestrado", ou "mèstrado"?

Resposta:

A dúvida do consulente deve-se, decerto, ao facto de se ouvir pronunciar a palavra mestrado por influência da do termo mestre, ou seja, abrindo-se o e da sílaba mes-.

Na realidade, quanto à acentuação, mestrado (mes·tra·do, conforme atesta o Vocabulário Ortográfico do Português, da responsabilidade do ILTEC) — é uma palavra grave (ou paroxítona), pois o acento tónico recai na penúltima sílaba [tra-], razão pela qual se acentua a intensidade e a abertura desta sílaba, sem que o uso deixasse de abrir a vogal da antepenúltima sílaba [mes]. Por sua vez, o vocábulo mestre, com duas sílabas, também é uma palavra grave (mes·tre) sendo a penúltima (mes) a sílaba tónica, o que justifica a sua intensificação em que o som do e é aberto1.

De qualquer modo, se compararmos a transcrição fonética de cada uma das palavras, apercebemo-nos de que é diferente a pronúncia prevista da silaba mes em mestrado [məʃ´tɾаdu, mɛʃ´tɾаdu] da de mestre [´mɛʃtɾ(ə)]. Portanto, são possíveis (e legítimas) as pronúncias com o e fechado [məʃ´tɾаdu] e com o e aberto [mɛʃ´tɾаdu].

1 O facto de se tratar de uma sílaba tónica não implica que os sons sejam aberto...

Pergunta:

Gostaria que me confirmassem se se escreve bttistas ou betetistas, para praticantes de BTT.

Resposta:

BTT – sigla de bicicleta todo-o-terreno (Infopédia) é uma das modalidades de ciclismo (tal como a de BMX), tutelada pela Federação Portuguesa do Ciclismo, não se encontrando registadas por esta entidade outras formas para designar os praticantes desta modalidade senão as de ciclistas ou corredores, conforme se pode verificar pela respetiva página.

No entanto, o termo betetista tem sido usado com frequência por algumas associações de ciclismo, como é o caso da Associação de Ciclismo do Minho, assim como por outros organismos que noticiam tal modalidade, destacando-se o caso de alguns jornais (como, por exemplo, o Jornal de Notícias) e até o de um trabalho académico («desportos de inverno, pedestrianistas, betetistas, escaladores, montanhistas e outros amantes da natureza valorizarão tanto mais os destinos natureza»).

 

Pergunta:

O que quer dizer a expressão «roda livre»?

Resposta:

O sentido dessa expressão (tal como o da grande maioria das palavras) depende do contexto em que ocorre.

Em Portugal, é frequente o uso da expressão (idiomática ou corrente) «em roda livre», sempre que nos queremos referir a uma situação em que não há coesão nem sentido, caraterizando-se pela falta/perda de lógica e de controlo, como se se tratasse de um caso praticamente desgovernado e sem limites, como se pode verificar através da seguinte frase (de uma Abertura do Ciberdúvidas que, por sua vez, remete para um texto intitulado Em roda livre:

«Na construção de um texto e das suas frases, é preciso ter em atenção critérios de coesão. Ana Martins revela como a falta de revisão de um texto jornalístico deixa os sujeitos de frase em autêntica roda livre.»

No entanto, se se tratar somente da expressão «roda livre», não há dúvida de que pertence à terminologia da área da mecânica, usada para designar «sistema de transmissão de movimentos em que uma roda só é impulsionada num sentido, mas pode rodar livremente em sentido contrário» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010).

Pergunta:

Gostaria de saber se se escreve nebulado, nublado ou se ambas as formas estão corretas.

Resposta:

Nublado é uma das formas de adjetivo1 que designa «coberto de nuvens; enevoado; toldado», assim como, usado em sentido figurado, significa «triste, inquieto, preocupado, sombrio, escuro» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010).

Para além deste, existem outros adjetivos semelhantes com o mesmo sentido:

Enevoado (particípio passado de enevoar), enublado (particípio passado de enublar), nubloso (do latim nubilōsu-) e nebuloso (do latim nebulōsu-), «obscurecido pelas nuvens ou por vapores densos; enevoado; nublado; que diz respeito a nebulosidade; sem transparência; turvo; difuso; pouco nítido: indistinto»; em sentido figurado, «pouco compreensível; obscuro; enigmático; longínquo: que aconteceu há muito; incerto; triste; sombrio; ameaçador» (idem).

A dúvida da consulente deve-se, decerto, à analogia com o adjetivo nebuloso ou, talvez, devido à existência do verbo nebular (pouco conhecido) que significa «tornar nebuloso; enevoar». 

1 Nublado, para além do adjetivo e de particípio passado do verbo nublar («cobrir de nuvens; enevoar; anuviar; escurecer»), pode ser também um nome/substantivo (masculino), significando «ajuntamento de nuvens» e, no sentido figurado, «contratempo; contrariedade» (idem).

Pergunta:

Tenho uma dúvida acerca da correcção do exame nacional de português do 12.º ano. Enderecei a dúvida ao GAVE, que me disse que "da questão colocada não decorre necessidade de esclarecimento", algo que é em si mesmo ridículo. Para mais, a dúvida parece-me legítima. Confiante de que a equipa do Ciberdúvidas, que muito prezo, me poderá esclarecer sobre a questão, decidi enviar-vos este e-mail.

A dúvida é a que se segue.

Como é que a resposta correcta à pergunta 1.1 das perguntas de escolha múltipla da versão 2 pode não ser a A? Afinal, ainda que no texto seja feita referência a uma defesa da Peregrinação, essa coincide na repreensão de que o autor é alvo por relatar acontecimentos falsos. Não coincidirá noutra repreensão que outras leituras críticas façam da obra, mas por certo coincide na repreensão de que o autor é alvo por relatar acontecimentos falsos, já que é escrita em defesa do autor, motivada por se afirmar em leituras críticas que Fernão Mendes Pinto relata acontecimentos falsos. Coincide, assim, nessa repreensão, que, sublinhe-se, não é uma repreensão qualquer: é a repreensão de que o autor é alvo por relatar acontecimentos falsos. Não a subscreve? Não.
Mas aborda-a. Incide nela. "Co-incidem" – as leituras da obra – nessa repreensão.

Resposta:

Embora o texto do Grupo II da Prova de Escrita de Português, do Exame Nacional do Ensino Secundário, de Ana Paula Laborinho, tenha como título «O Livro dos Fingimentos» (in Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 29/12/2010 a 11/01/2011) — formulação que teve como referência o comentário (pouco conveniente) feito à Peregrinação pelo jesuíta João Rodrigues, antigo companheiro de Fernão Mendes Pinto, na sua obra História da Igreja do Japão —, da sua leitura depreende-se que o objetivo da autora é precisamente desconstruir essa imagem negativa de relato de fingimento passada pelo historiador jesuíta sobre a narrativa de Mendes Pinto, valorizando o recurso à ficção e à recriação da realidade.

Importa ter em conta que a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto não é um documento histórico nem foi feito com essa intenção, pois está construído na 1.ª pessoa, o que retira qualquer possibilidade de se pensar que se poderia tratar de um texto fundado na objetividade e na imparcialidade das ações narradas e dos universos descritos. Esta obra foi escrita por um narrador (não por um historiador ou cronista da época) a partir das memórias das suas vivências e das suas viagens pelo Oriente, em que a subjetividade interfere na realidade observada e vivida, em que o olhar é fruto do sentir, em que as emoções e os sentimentos misturam verdade e ficção, o real e o imaginário, sem que o texto perca o seu valor. Não nos podemos esquecer de que se trata de um texto literário, de um relato de viagem e de aventura, e não de um texto histórico.

Por isso, desde o primeiro parágrafo se verifica a reabilitação da obra, enquanto texto literário, pois a autora vai evidenciando os argumentos em que contraria a ideia de «obra da mentira» veiculada por «poderosas vozes contra a veracidade do relato, sendo exemplar o comentário [...] de...