Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
61K

Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Perdi o bonde e a esperança, voltei pálido para casa.»

«Comprei um apartamento e, com ele, uma briga.»

Há nome para a figura acima, em que o mesmo verbo, regendo diferentes termos, assume caráter semântico diverso?

Resposta:

Parece tratar-se de casos de tropos [«do grego trópos, "volta, desvio, mudança, translação»], uma vez que nos deparamos com «uma espécie de linguagem figurada», em que se verifica a translação de sentido de uma palavra (o do verbo perder e o do verbo comprar) que resulta «de uma simples associação de ideias, efetuada por semelhança, conexão ou correlação» (Massaud Moisés, Dicionário de Termos Literários, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 502).

Relativamente à primeira frase — «Perdi o bonde e a esperança, voltei pálido para casa» —, o seu autor joga com dois dos sentidos do verbo perder1: o de «não chegar a tempo» [em «Perdi o bonde»] e o de «ficar privado de (uma coisa ou qualidade física ou moral que se possuía)» [em «(perdi) a esperança]».

Por sua vez, na segunda frase — «Comprei um apartamento e, com ele, uma briga» —, tudo gira à roda dos diferentes valores/sentidos do verbo comprar1: o de «obter, mediante pagamento, a propriedade ou o uso de» [em «Comprei um apartamento»] e o de «adquirir» (sem escolher/querer) em «(comprei) uma briga».

1 Fontes: Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001; Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001.

Pergunta:

«Quer os atacantes, quer os defensores, foram progressivamente aperfeiçoando as suas tácticas.»

A pontuação usada na frase acima está correcta? Ou o sujeito e o predicado estão indevidamente separados por vírgula(s)?

Resposta:

De facto, tal como o consulente sugere, não se deve separar o sujeito do predicado, o que implica que não haja vírgula antes do verbo. Portanto, o sujeito está, nessa frase, indevidamente separado do predicado.

Relativamente à vírgula usada entre os dois elementos do sujeito da frase — um sujeito composto por dois elementos ligados pela conjunção coordenativa correlativa quer... quer1 —, importa assinalar que o seu emprego não é previsto2 como norma, o que não significa que se possa considerar um caso de incorreção, uma vez que a vírgula se emprega «para separar elementos que exercem a mesma função sintática (sujeito composto), quando não vêm unidos pelas conjunções e, ou e nem» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa,  2001, p. 640).

Portanto, são possíveis duas formas para essa frase:

«Quer os atacantes quer os defensores foram progressivamente aperfeiçoando as suas táticas.»

«Quer os atacantes, quer os defensores foram progressivamente aperfeiçoando as suas táticas.»

1 Segundo o Dicionário Terminológico, «algumas conjunções coordenativas são correlativas, podendo ocorrer precedendo cada um dos elementos coordenados. São exemplo de conjunções correlativas: "ou… ou", "nem… nem", "quer… quer"».

2 Os exemplos apresentados pela Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 2003, p. 586), de Mira Mateus et alli, para os casos de coordenação de dois sintagmas nominais através das expressões correl...

Pergunta:

No desenvolvimento do texto expositivo-argumentativo...

1) quanto aos argumentos e exemplos, devem estar no mesmo parágrafo, ou deve-se colocar o argumento num parágrafo e o exemplo no parágrafo seguinte? (separar, por parágrafos, o argumento do exemplo?)

2) o desenvolvimento pode ser constituído por um argumento/exemplo e um contra-argumento/exemplo?

Resposta:

Respondendo às questões:

1) Um texto expositivo-argumentativo pode apresentar mais do que um argumento em defesa de determinada posição, argumentos esses que são, geralmente, ilustrados com um ou mais exemplos significativos que contribuem para a fundamentação de cada um dos argumentos. Por isso, se o texto apresentar mais de um argumento sobre o mesmo tema, dever-se-á marcar graficamente cada um deles, colocando-os em parágrafos diferentes, situação distinta da dos respetivos exemplos.

Assim, se não há dúvidas sobre a necessidade de se colocar cada argumento em parágrafo próprio, o mesmo não podemos dizer relativamente aos exemplos ilustrativos apresentados. Parece-nos que tudo depende do tipo de discurso que se faça. Por exemplo, se nos limitarmos a identificar um facto como exemplo, não se justifica a colocação num novo parágrafo.

No entanto, para se fundamentar melhor o ponto de vista defendido num argumento, se se expuser um determinado caso que merece ser explorado, então, justifica-se o uso de parágrafo, sem que isso comprometa a organização lógica do texto.

Repare-se que a apresentação de diferentes argumentos implica o uso de conetores discursivos como «processos de sequencialização que exprimem vários tipos de dependência semântica das frases que ocorrem na superfície textual» (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 91).

2) O desenvolvimento de todo o texto expositivo-argumentativo deve conter não só argumento(s), mas também contra-argumentos(s), elementos essenciais para a defesa da tese do seu autor. É essa a parte expositiva do texto, em que se«desenvolve um raciocínio com o fim de defender ou repudiar uma tese ou ponto de vista para convencer um oponente, um interlocutor circunstanci...

Pergunta:

Mais uma vez recorro à ajuda do Ciberdúvidas, embora, desta vez, num plano mais teórico.

Comecei a ler recentemente a tradução de Odorico Mendes da Ilíada. Por exercício apenas mental, tentei escandir seus primeiros versos para encontrar-lhes o ritmo. A mim surgiram como decassílabos, o que uma rápida pesquisa pela Internet pareceu mais do que confirmar. Entretanto, embora algumas fontes indiquem que Odorico Mendes fez uso do decassílabo heroico, minha escansão deu-me a impressão de um padrão ou sáfico ou ao menos deveras variado, o que me leva a crer que não devo estar escandindo corretamente. Poderiam os senhores me dar sua impressão e análise?

Eis os seis primeiros versos, com os quais me limitei a trabalhar até agora:

«Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles / A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos, / Verdes no Orco lançou mil fortes almas, / Corpos de heróis a cães e abutres pasto: / Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem / O de homens chefe e o Mirmidon divino.»

Resposta:

Amorim de Carvalho, no seu Tratado de Versificação Portuguesa (Porto, 1941, p. 26) alerta-nos para o facto de que «o heróico e o sáfico são frequentemente combinados», o que significa que num poema podem ocorrer decassílabos «de acentuação interna na 6.ª e na 10.ª sílabas [decassílabo heróico, porque o seu ritmo, vigoroso e grave, é adequado aos assuntos de caráter épico»] (idem, p. 25) e «de acentuação na 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas [sáfico] (idem, p. 27).

Uma vez que se está a analisar a questão do decassílabo sáfico, importa assinalar, também, que Cunha e Cintra nos alertam para a possibilidade de este tipo de decassílabo «ter a 1.ª ou a 2.ª sílaba também fortes» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 684), caso que exemplificam com a seguinte estrofe:

Quan/do eu/ te/ fu/jo e/ me/ des/vi/o/ cau(to)

Da/ luz /de/ fo/go/ que/ te/ cer/ca, oh/! be(la),

Con/ti/go/ di/zes/, sus/pi/ran/do a/mo(res)

«— Meu/Deus/! que/ ge/lo/, que/ fri/e/za a/que(la)!»

(Casimiro Abreu)

Assim, e tendo em conta estas observações, em relação à escansão que fizemos dos versos que nos apresentou, apercebemo-nos de que se trata, de facto, de versos decassílabos em que se verifica a ocorrência de quatro versos sáficos e de dois heróicos:

Can/ta/-me, ó/ deu/sa/, do/ Pe/lei/o A/qui(les) — sáfico

A i/ra/ te/naz/, que/, lu/tu/o/sa aos/ Gre(gos), — sáfico

Ver/des/ no Or...

Pergunta:

Nós seguramos "nas" coisas, ou seguramos "as" coisas...? (A mesma pergunta faço para os verbos pegar e agarrar...)

Resposta:

São possíveis e corretas as duas formas — «Nós seguramos nas coisas» e «seguramos as coisas» —, mas cada uma delas tem um valor/sentido diferente.

O verbo segurar, como transitivo direto, equivale a agarrar. Neste caso, logo a seguir ao verbo surge o complemento direto (o que se segura/agarra). Portanto, quando se diz/escreve «Nós seguramos as coisas» significa que «Nós agarramos as coisas».

Por sua vez, «segurar em» [verbo + preposição em] corresponde a «manter na mesma posição». Por isso, «Nós seguramos nas coisas» implica o sentido de «mantemos as coisas na mesma posição».

Nota: Quando usado pronominalmente, pode equivaler a «conter-se» [«Não se segurou e desatou a chorar»], a «manter-se na mesma posição [«O teto não se segurara e desabara»], assim como — com ou sem as preposições a ou em — a «agarrar-se para não cair», o que se pode verificar através dos seguintes exemplos:

«Os passageiros que viajarem de pé devem segurar-se bem, pois pode haver uma travagem brusca.»

«Pode segurar-se a mim.»

«Segura-te no corrimão.»

Fonte: Dicionário Gramatical dos Verbos Portugueses, da Texto Editores, 2002.