Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «convicto que» na frase «Estou convicto que as coisas vão melhorar» está correta, pois vi um exercício onde se afirma que a resposta correta é «convicto de que».

Alguma regra para o uso da expressão?

Resposta:

A forma correta implica o uso da preposição de1 (cf. Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, de Francisco Fernandes). O adjetivo convicto seleciona uma oração completiva preposicionada (introduzida pela preposição de), razão pela qual a construção «convicto de que» é a que deve ser usada.

Para que não haja dúvidas, importa assinalar que a estrutura «convicto de que» é incluída por Malaca Casteleiro, em Sintaxe Transformacional do Adjectivo: Regência das Construções Completivas (Lisboa, INIC, 181, p. 496) na lista de adjetivos que determinam o padrão Vcopulativo + Adjetivo + de que-Frase (completiva), atestando a construção da frase do seguinte forma:

«Estou convicto de que as coisas vão melhorar.»

Nota: Para além da preposição de, o adjetivo convicto admite também, quando não seleciona uma oração completiva, mas um sintagma nominal, a regência com a preposição em, conforme se verifica nos seguintes exemplos:

«Estava muito convicto de que a velha era servida de favores do alto e sempre mais ou menos inspirada, atentavam religiosamente no que ela dizia» (Camilo Castelo Branco).

«Estava muito convicto da força das suas ideias» (Luís Viana Filho, A Vida de Rui Barbosa, 63).

«Firmes e convictos na sua fé como antigos sacerdotes de Tiro ou de Cartago, oferecendo aos deuses aplacados o sacrifício expiatório da rês humana» (Ramalho Ortigão, A Holanda, 2).

1 Repare-se que o adjetivo convicto segue a regência do verbo correspondente — convencer-se —, tal como nos indica Inês Duarte no ...

Pergunta:

«A sede local do Ciberdúvidas, ao bairro da Vila Alice, é grande», ou «Houve algazara na Rua n.º 21, à Vila Alice»?

Apresento-vos estas duas frases para perguntar se é correto dizer-se «à vila» em vez de «na vila», neste tipo de construção fraseológica.

Resposta:

«Ao bairro da Vila Alie», assim como «à Vila Alice» são construções corretas, porque, de entre os seus vários valores semânticos, a preposição a, na expressão de valores locativos, indica «localização, situação precisa ou aproximada» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001), como se pode verificar pelo seguinte exemplo:

«Ela mora num palacete a São Bento

Há seis décadas, Vasco Botelho de Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma (1952), referiu-se com mais pormenor a este valor locativo da preposição a:

«A preposição a é de uso naturalíssimo em locativos com indefinida aproximação, em especial na referência a bairros ou a sítios: "Fulano mora numa bela casa, à Estrela" [...] E temos a rua do Sol ao Rato.

Este emprego de preposição a, em casos como ao Rato, ao Caldas, etc., já tem sido considerado galicismo. Porém, não é. Em Gil Vicente lá está o mesmo emprego do a a traduzir proximidade:

"Assis era um alfaiate
que morava ali à Sé."

(Romagem de Agravados)

No Brasil é comuníssima ainda hoje tal sintaxe. Os jornais andam cheios de — à avenida tal, à rua isto, à praça daquilo, etc. [...].»

Pergunta:

«Sonhar a subir»/«sonhar em subir»/«sonhar subir»...

«Com tantos pecados cometidos, nem sequer posso sonhar a subir ao reino dos céus», ou «Com tantos pecados cometidos, nem sequer posso sonhar em subir ao reino dos céus», ou «Com tantos pecados cometidos, nem sequer posso sonhar subir ao reino dos céus»?

No Dicionário Houaiss encontrei a frase exemplificativa «sonha em ser advogado». Resta saber se esta construção se usa em português de Portugal.

Resposta:

Como na frase em questão o verbo sonhar é seguido de outro verbo no infinitivo (sonhar + infinitivo), há duas formas possíveis para o mesmo enunciado: 

«Com tantos pecados cometidos, nem sequer posso sonhar subir ao reino dos céus» e «Com tantos pecados cometidos, nem sequer posso sonhar em subir ao reino dos céus.»

A sintaxe do verbo sonhar, significando «desejar» e/ou «entregar-se a fantasias», prevê três construções:

— sem preposição (+ sintagma nominal ou verbo no infinitivo):

 

«O seu primo sofre muito porque sonha o impossível.»

 

«Há mulheres que sonham encontrar o príncipe encantado.»

 

«O meu primo sonha ter poderes mágicos.»

 

«Sonho viajar por todo o mundo.»

— com a preposição em (somente seguida de verbo no infinitivo = + frase não finita):

 

«Sonho em viajar por todo o mundo.»

 

«O meu primo sonha em ter poderes mágicos.»

— com a preposição com (somente com sintagma nominal):

 

«O seu primo sofre muito porque sonha com o impossível.»

 ...

Pergunta:

Na frase «O Manuel corria com os punhos cerrados», como classificar morfologicamente «cerrados»?

Resposta:

Cerrados — na frase «O Manuel apresentava os punhos cerrados — é um adjetivo participial (do particípio passado do verbo cerrar).

A questão apresentada deve-se, decerto, à incerteza entre tratar-se de um caso de particípio passado ou de adjetivo, pois, tal como acontece com muitos outros particípios — como, por exemplo, cansado, preocupado, educado, aberto, aborrecido, embaraçado, enfurecido, desolado, ferido, torturado, preso —, cerrados (com o sentido de «que se apresentam fechados») é um dos casos de «particípios verbais [que] funcionam sintaticamente como adjetivos, surgindo em posição predicativa ou atributiva e podendo ser modificados por expressão de grau» (Mira Mateus, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 374).

Repare-se que a frase aceita a colocação de cerrados nos graus superlativos: «com os punhos muito cerrados», «com os punhos cerradíssimos», o que atesta a classificação como adjetivo.

Pergunta:

Escreve-se «De referir que os documentos anteriormente entregues pelo consórcio não respondem ao solicitado», ou «De referir que os documentos anteriormente entregados pelo consórcio não respondem ao solicitado»?

Resposta:

A norma indica o uso do particípio irregular — entregues —, pois trata-se de um caso de uma construção passiva [com elipse da(s) forma(s) foram ou tinham sido, do verbo auxiliar ser]. Repare-se que, sem a elipse, a frase teria a seguinte forma:

«De referir que os documentos [que foram] anteriormente entregues pelo consórcio não correspondem ao solicitado.»

Por sua vez, se se colocasse a frase na ativa, com o verbo auxiliar ter, usar-se-ia o particípio regular entregado:

«Os documentos que o consórcio tinha entregado anteriormente não correspondem ao solicitado.»

Nota: Sobre o uso dos particípios (regular e irregular) dos verbos abundantes ou de duplo particípio, Cunha e Cintra, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 441), dizem-nos o seguinte: «De regra, a forma regular emprega-se na constituição dos tempos da VOZ ACTIVA, isto é, acompanhada dos auxiliares ter ou haver; a irregular usa-se, de preferência, na formação dos tempos da VOZ PASSIVA, ou seja, acompanhada do auxiliar ser