Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber o conceito sociológico de cultura.

Obrigado.

Resposta:

Cultura é um termo muito abrangente que pressupõe várias áreas, e o próprio conceito sociológico não se restringe ao domínio da sociologia.

Seguindo os dicionários, cultura é definida, no âmbito da sociologia, como o «sistema de valores, conhecimentos, técnicas e artefactos, de padrões de comportamento e atitudes que caracteriza uma determinada sociedade» (Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Ed. Melhoramentos, 1972) ou, também, como o «conjunto de costumes, práticas, comportamentos que são adquiridos e transmitidos socialmente de geração em geração: "cultura asteca", "cultura inca", "cultura greco-latina", "cultura latino-americana", "cultura ocidental"» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001). Pelo facto de estar intimamente associada às particularidades de um determinado povo ou de uma civilização, o termo cultura refere-se, ainda, ao «património literário, artístico e científico de um grupo social, de um povo», o que está patente na seguinte frase: «Recuperar os monumentos antigos é preservar a nossa cultura» (idem).

Por sua vez, se não nos quisermos limitar a estas fontes tão abrangentes e optarmos por direccionarmos a nossa pesquisa a bibliografia específica, da autoria de especialistas, apercebemo-nos de que as suas definições de cultura não divergem das dos dicionários. O sociólogo Guy Rocher, em  Sociologia Geral (Lisboa, Ed. Presença, 1977), define cultura como sendo «um conjunto ligado de maneiras de pensar, de sentir e de agir mais ou menos formalizadas que, sendo apreendidas e partilhadas por uma pluralidade de pessoas, servem, de uma maneira simultaneamente objectiva e simbólica, para organizar essas pessoas numa colect...

Pergunta:

Agradecia que me informassem como é que se deve escrever:

«Ficaremos encantados de receber V. Exa. no nosso escritório», ou «Ficaremos encantados em receber V. Exa. no nosso escritório»?

Resposta:

Segundo o Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjectivos (2005), de Francisco Fernandes, e o Dicionário Prático de Substantivos e Adjectivos com os Regimes Preposicionais (1997), de Micaela Ghitescu, o adjectivo encantado selecciona um complemento introduzido pelas preposições com, de e por, como se pode verificar nos seguintes exemplos: 

«Estou encantado com a/ pela tua ideia.»
«Estou encantado com a vista deste quadro.» (Aulete)

«Conversou com ela durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao chegar a casa não pôde dormir.» (Machado de Assis, Contos Fluminenses, 98)
« Encantado dos efeitos da boa alma e grande engenho do romancista francês.» (Camilo, As Três Irmãs, 9)
«Murmurou o capataz, encantado da invenção.» (Alberto Rangel, Fura-Mundo, 342)
«Ficou encantado por encontrar ali um velho amigo.»
« Encantado com a graça da moça.»

Tratando-se o termo encantado de um adjectivo participial (do verbo encantar), decerto, respeitará as regências do verbo a partir do qual se formou. No entanto, parece não haver uniformidade entre os dicionaristas relativamente às preposições seleccionadas pelo verbo encantar, uma vez que registam várias formas: 

encantar-se com, «fascinar-se»: «Encantou-se com as palavras simpáticas que lhe dirigi» (Dicionário Prático de Verbos seguidos de preposições, de Helena Ventura e Manuela Caseiro, 1990); 

—...

Pergunta:

Como fica a frase «Eu gosto de chocolate» na forma passiva?

Resposta:

A frase «Eu gosto de chocolate» não permite ser convertida para a voz passiva.

Para que uma frase possa assumir a voz passiva, tem de conter «um verbo construído com objecto directo» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2202, p. 149), o que permite fazer as seguintes transformações: a) o objecto/complemento directo passa a ser sujeito da passiva; b) o verbo passa à forma passiva (formada com os templos simples do verbo auxiliar ser e o particípio do verbo que se quer conjugar) no mesmo tempo e no mesmo modo; c) o sujeito converte-se em agente da passiva.

Ora, o verbo gostar não é um verbo transitivo, isto é, não tem/pede complemento directo ou, dito de forma mais rigorosa, não é um verbo «que selecciona um argumento interno directo com a relação gramatical de objecto directo» (Mira Mateus et alli, Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 297). Aliás, é um dos verbos «que não podem ocorrer em passivas sintácticas» (idem, p. 529), pois gostar «assume uma forma preposicional» (idem), razão pela qual se encontra incluído nas «restrições sobre verbos que podem ocorrer em passivas sintácticas» (idem).

De facto, o verbo gostar implica o uso da preposição de (regência), seleccionando um complemento preposicional, e não um complemento directo. Portanto, «chocolate» não é complemento/objecto directo, mas um complemento preposicional. Assim sendo, sem a presença de complemento directo da voz activa, não há possibilidade de se construir a voz passiva, porque falta a figura do sujeito.

O mesmo não se passa com outras frases cujo sent...

Pergunta:

Tenho dúvidas em relação a uma expressão que ouço muitas vezes — a colocação da preposição em antes do advérbio de tempo antes, como no exemplo: «Vire à direita em antes da curva» em vez de «Vire à direita antes da curva». Parece-me uma utilização imprópria da preposição, e soa-me, no mínimo a uma redundância. Gostaria de saber se constitui em si mesmo um erro gramatical ou de sintaxe.

Obrigada.

Resposta:

Apesar de não ser muito vulgar o uso da expressão «em antes», a realidade é que a mesma se encontra registada como locução adverbial no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2007), inserida na lista de locuções formadas com o advérbio antes, como sinónimo da locução «de antes», que, por sua vez, significa «em época passada; antigamente; dantes». Assim, «em antes», «m. q. de antes», tem o mesmo valor/sentido que dantes ou «de antes». Exemplo: «caminhos onde de antes rodavam carros de bois».

 

A partir do significado que está dicionarizado — o de «antigamente, dantes, na época passada» — apercebemo-nos de que essa locução está relacionada com o campo semântico temporal, pois refere-se a um tempo passado. Ora, não é com este valor temporal que «em antes» ocorre na frase que a consulente nos apresenta. Aí, pretende-se que o seu sentido esteja ligado à noção de espaço, o que não corresponde ao significado atestado pelo dicionário. Depreende-se, então, que se trata de um caso em que uso da locução em antes é inadequado à situação representada, pois esta traduz uma indicação sobre um determinado percurso, sem qualquer indício da presença de uma marca temporal de outra época. Infere-se, assim, que se trata de um equívoco, em que se atribui um outro sentido à locução, diferente do seu significado real.

 

Tal expressão/locução adverbial parece-nos fazer parte da informalidade de alguns discursos orais e talvez seja fruto de decalque de algumas locuções adverbiais, formadas da associação da preposição em com um advérbio, tal como «em breve», «de quando em quando», «de onde em onde», «de tempos em tempos», «de vez em quando», «em cima».

Pergunta:

Gostaria de vos pedir um esclarecimento a respeito da seguinte frase: «Ou este óleo se procura situar num momento anterior à ruína das muralhas, ou a ruína não é levada à letra, uma vez que estas estão, aqui, intactas.» O emprego do determinante demonstrativo estas está correcto? Ou, por estarmos a fazer referência ao substantivo muralhas, deveríamos escrever aquelas?

Obrigada pela vossa ajuda.

Resposta:

Em primeiro lugar, parece-nos que há um pequeno lapso na frase que nos apresenta, o que nos leva a propor a seguinte forma: «Ou este óleo se procura situar num momento anterior ao da [ao momento da] ruína das muralhas, ou a ruína não é levada à letra, uma vez que estas estão, aqui, intactas.»

Relativamente à questão que nos apresenta sobre o pronome demonstrativo mais adequado — «estas» ou «aquelas» para se referir a «muralhas», que, por sua vez, se encontra antes da última ocorrência da palavra «ruína» —, parece-nos que as duas formas são possíveis.

Tendo em conta que «os pronomes demonstrativos se empregam também para lembrar ao ouvinte ou ao leitor o que já foi mencionado ou que se vai mencionar» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 328), exercendo, assim, «a sua função anafórica (do grego anaphorikós = que faz lembrar, que traz à memória)», a escolha de um ou de outro demonstrativo deve respeitar os respectivos valores, «considerando-os nas suas relações com as pessoas do discurso» (idem, p. 329).

Assim, enquanto as formas «este(s), esta(s) e isto indicam o que está perto da pessoa que fala, [assim como] o tempo presente em relação à pessoa que fala» (idem), as formas «aquele(s), aquela(s) e aquilo denotam o que está afastado tanto da pessoa que fala como da pessoa a quem se fala, [evidenciando] um afastamento no tempo de modo vago, ou uma época remota» (idem, pp. 330-331).

A partir disto, e apesar de, à primeira vista, se ficar com a ideia de que a forma mais correcta será a utilização do pronome aquelas, verifica-se que há fundame...