Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é a diferença semântica existente entre os verbos partir e quebrar? Pode-se dizer indiferentemente que «O João partiu o vidro» e «O João quebrou o vidro»?

Resposta:

Entre os dois verbos existem, de facto, diferenças semânticas que, como é natural, resultam da própria etimologia.

O verbo quebrar — do latim crēpāre, «produzir som seco, estalar; partir-se; quebrar; fender»  (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, vol. V, 4.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1987) — herdou directamente o seu valor do significado original do seu étimo latino, não tendo sofrido grandes alterações de sentido, que gira sempre à volta do campo semântico de «corte; interrupção; abalo», algo que provocou alterações ao estado de alguma coisa ou de alguém, tal como se pode verificar pela lista de significados atestados pelos dicionários: «reduzir a pedaços; romper; partir; fracturar; fragmentar; rachar; fender; cortar; enfraquecer, debilitar; abater; perturbar; interromper; perturbar; infringir; violar; transgredir; desfazer; dissipar; abalar; pôr termo a; acabar; interromper; cortar» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001). Por isso, verificamos vários casos em que esse verbo ocorre:

«O vidro quebrou-se com a trepidação.»

«A música estridente quebrou o silêncio.»

«Ela quebrou as regras.»

«Aquela notícia foi tão devastadora, que a quebrou de tal forma, que teve de ser hospitalizada.»

Por sua vez, o verbo partir — do latim partīre, «dividir em partes; repartir; distribuir» — retém do seu étimo o sentido original, porque é usado, na maioria das vezes, precisamente para designar a acção de «dividir» (ex.: «Partimos o bolo em fatias»), de «separar» (ex.: «A Coreia partiu-se em duas depois d...

Pergunta:

Gostaria de saber a função da conjunção «não obstante», isto é, porque é enquadrada como conjunção adversativa (que penso obstar tem o significado de oposição e ficaria como aditiva: não obstante?!?!)

E que significa ubérrimo (estava lendo úbere é mamilo), sendo esse superlativo absoluto sintético é, portanto, o quê: peituda, grande peito ou o quê?!?

Um obrigadão à atenção, estou ansioso esperando esclarecimentos.

Resposta:

Segundo os dicionários consultados1, «não obstante» significa «apesar de; contudo; sem embargo», o que evidencia o seu valor adversativo ou concessivo. As gramáticas tradicionais classificam-na como conjunção ou locução conjuncional adversativa, a par de «mas, porém, todavia, contudo, apesar disso, ao passo que, de outra sorte, anda assim» (José Nunes de Figueiredo e António Gomes Ferreira, Compêndio de Gramática Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1965, p. 194).

Relativamente ao sentido do adjectivo obstante (do latim obstante-, «que impede», particípio presente de obstāre, «dificultar; impedir; obstar»), verifica-se que significa, de facto, «que obsta», do que se poderia inferir que a locução «não obstante», enquanto expressão negativa, negasse o valor de obstante, mas a verdade é que o valor adversativo ou concessivo de tal locução se  institucionalizou e, portanto, é com esse sentido que está consagrada pelo uso.

Quanto à palavra ubérrimo (do latim uberrĭmu-), encontra-se dicionarizada como adjectivo no grau superlativo absoluto sintético de úbere, significando «muito úbere; fertilíssimo», pois a palavra úbere, para além de nome/substantivo que designa «órgão mamário da fêmeas de alguns animais; teta; mama», é também um adjectivo que significa «fértil; fecundo; produtivo; abundante; farto».

 

1 Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004; Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001; Dicionári...

Pergunta:

O que é o momento narrativo?

Resposta:

Se se fala de momento narrativo, entra-se no domínio do tempo, uma das categorias da narrativa. Mas, para se fazer a análise do tempo de uma narrativa, tem de se ter em conta duas realidades — a do tempo da história (narrada) e a do tempo do discurso (da escrita) — que, apesar de distintos, estão, naturalmente, relacionados.

Tendo em conta a presença destes dois tipos de tempo numa narrativa, o momento narrativo  poderá referir-se a um determinado momento da história/acção em que decorre um certo episódio (e sobre o qual se quer fazer uma análise mais atenta) ou, por outro lado, referir-se-á a um certo momento/período do discurso construído pelo narrador que, decerto, terá algumas particularidades que deverão ser objecto de reflexão e de estudo.

No estudo de qualquer texto narrativo, a prática diz-nos que se tem privilegiado o tempo da história, pois a análise gira em torno da acção/história narrada, em que a temporalidade da história se consegue, geralmente, identificar com algum rigor, fazendo-se o levantamento dos marcos temporais que enquadram a narrativa. «Assim, ter-se-á casos de histórias que duram horas, dias, semanas, meses, anos e até séculos. É, igualmente, respeitante ao tempo da história, que se costuma distinguir o tempo em cronológico e em psicológico. O tempo cronológico não é outro senão o tempo que o relógio assinala; já o tempo psicológico, por seu turno, é a maneira pela qual o tempo é subjectivamente vivenciado pelas personagens que povoam determinado mundo possível.» (E-Dicionário de Termos Literários)

De facto, devido à presença de marcas temporais nas narrativas, não há g...

Pergunta:

Na seguinte frase: «A fome trazia-nos à hora certa das refeições.» Estamos perante uma personificação, ou uma frase em sentido figurado?

Atenciosamente.

Resposta:

Não há dúvida de que a personificação atravessa essa frase, em que «a fome» é colocada como sujeito da acção que recai sobre «nós», tendo-lhe sido, portanto, atribuídas «qualidades, atitudes e impulsos humanos». Ora, a personificação é uma figura de retórica, o que traduz, naturalmente, o sentido figurado.

Tratando-se de uma frase em que se confere a uma palavra outros valores para além do seu sentido imediato, dando destaque à conotação, torna-se claro que é marcadamente um enunciado de sentido figurado.

Pergunta:

No âmbito da noção de personagem, como a identificar num texto? Tudo o que mexe ou apresenta alguma actividade, tal como um cão que ladra, é uma personagem do texto? Numa referência a um carro que passou e quase atropelou alguém, o condutor também é uma personagem? Por vezes os textos apresentam diversos intervenientes, mas com uma intervenção muito passiva ou distante. São tudo personagens como alguns manuais fazem parecer?

Desde já muito obrigada pela ajuda que me possam dar.

Resposta:

Segundo o Dicionário de Narratologia (4.ª ed., Coimbra, Almedina, 1994, pp. 314-318), de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes), «a personagem (na narrativa literária, no cinema, na banda desenhada, no folhetim radiofónico ou na telenovela) revela-se, não só, no eixo em torno da qual gira a acção e em função da qual se organiza a economia da narrativa. Uma personagem é, pois, o suporte das redundâncias e das transformações semânticas da narrativa, é constituída pela soma de informações facultadas sobre o que ela é e sobre o que ela faz. Para isso contribui a existência de processos que permitem localizar e identificar a personagem: o nome próprio, a caracterização, o discurso da personagem».

Relativamente às questões que são apresentadas sobre a possibilidade (ou, antes, a legitimidade) de, num texto narrativo, «tudo o que mexe ou apresenta alguma actividade, tal como um cão que ladra», poder ter o estatuto de personagem, não podemos deixar de alertar para a importância da função (ou do papel) de cada uma de tais «figuras» no desenrolar da acção. Porque é precisamente a força da sua intervenção na acção, a sua funcionalidade e o peso específico na economia do relato que definem a personagem em termos de relevo, o que leva a que possa ser classificada como protagonista (figura central que se destaca de todas as restantes personagens que povoam a história), personagem secundária e/ou mero figurante que, por sua vez, «pode ocupar um lugar claramente subalterno, distanciado e passivo em relação aos incidentes que fazem avançar a intriga, [surgindo como] uma personagem em princípio irrelevante para o desenrolar da acção, [podendo] considerar-se uma subcategoria». Assim, o figurante «surge [frequentemente] como elemento de um conjunto ou multidão e que, não desempenhando um papel relevante na intriga, tem o propósito de ajudar na ilustração de situações de cariz social como uma atmosfera, um posicion...