Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sempre ouvi dizer que existem várias literaturas como por exemplo: literatura brasileira, chilena, argentina, moçambicana, etc. Será isto possível existir visto que a palavra literatura vem do latim litteris, que significa «letras», e tem a ver com determinada língua e não com um determinado país? Desta forma, se no Brasil se fala o português, se no Chile, o espanhol, etc., como se pode falar em literatura brasileira ou chilena, se não existem essas línguas?

Resposta:

Língua e literatura são realidades distintas. Sobre a especificidade de cada uma, aconselha-se a leitura dos artigos «Língua» e «Literatura» (em que se reflecte sobre a etimologia e a evolução do sentido desta palavra), em  E-Dicionário de Termos Literários.

Enquanto a língua é um código fixo e um conjunto de convenções adoptadas por um grupo de falantes de uma determinada comunidade, caracterizando-se por ser de natureza social, a literatura — usando a língua — afirma-se pela riqueza de linguagens, pela subjectividade e pela conotação.

Ora, se  o texto literário tem a arte (e o poder) de reflectir a(s) realidade(s) e o(s) universo(s) (re)criados pelo sujeito de enunciação, não há lugar para dúvidas de que representará as diferentes realidades (políticas, sociais, económicas, intelectuais, linguísticas…),  deixando marcas das particularidades do espaço, do tempo, da geografia,  do ambiente, da cultura, das singularidades de cada região, de cada país, mesmo que a língua seja comum a outros países e a diversos continentes.

A língua encontra-se registada nos dicionários e nos vocabulários ortográficos comuns aos falantes da mesma comunidade linguística — como, por exemplo, a lusófona, mas cada país tem a literatura própria, constituída pelas obras dos seus escritores, em que emergem os seus traços particulares, as suas peculiaridades. Por isso existem as literaturas de língua portuguesa, em que a lite...

Pergunta:

Qual o grau aumentativo da palavra cara?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A formação do grau aumentativo pode ser feita por dois processos:

a) sinteticamente, mediante o emprego dos sufixos aumentativos usados em português: -ão (caldeirão, paredão), -alhão (vagalhão), -(z)arrão (homenzarrão, gatarrão, canzarrão), -eirão (asneirão, caldeirão), -aça (barbaça, barcaça), -aço (animalaço, ricaço), -ázio (copázio), -uça (dentuça), -anzil (corpanzil), -aréu (fogaréu), -arra (bocarra), -orra (cabeçorra), -astro (medicastro), -az (lobaz), -alhaz (facalhaz), -...

Pergunta:

Poderia me ajudar a identificar se o nível de linguagem do texto abaixo é coloquial ou culta? Justifique se possível.

Trata-se de uma composição do Renato Russo:

Mudaram as estações, nada mudou

Mas eu sei que alguma coisa aconteceu,

Tá tudo assim, tão diferente.

Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar

Que tudo era pra sempre, sem saber,

Que o pra sempre, sempre acaba

Mais nada vai conseguir mudar o que ficou

Quando penso em alguém, só penso em você

E aí então, estamos bem

Mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está

Nem desistir nem tentar agora tanto faz

Estamos indo de volta pra casa...

Resposta:

O tom coloquial atravessa, de facto, este texto de Renato Russo, em que o sujeito poético cria a imagem de uma «fala» em que se dirige a um «tu» (ou antes a um «você») — «Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar». «Quando penso em alguém, só penso em você» — que o escuta e com quem tem o à-vontade de um passado de memórias conjuntas.

Mas o tom do discurso não corresponde a um nível de língua, pois a noção de nível deve ser entendida sempre de acordo com a função básica de qualquer sistema linguístico, a comunicação, em que «cada falante faz as escolhas, de entre as permitidas pelo corpus por si adquirido, que considera adequadas às diferentes situações comunicativas e ao contexto», observando-se que é «a utilização social do sistema linguístico que permite a diversificação da linguagem comum em várias outras separadas entre si por dúbias fronteiras» (Dicionário de Termos Literários). Essa é a razão pela qual se considera como níveis de língua os seguintes — corrente, familiar, popular, cuidado e culto —, não sendo aí incluídas «as variações regional nem literária, a primeira [(regionalismos) por ser fruto de um maior ou menor isolamento de um determinado grupo no interior de uma dada comunidade linguística] e a segunda por se tratar de uma utilização da linguagem com uma finalidade artística e não com uma finalidade prática» (idem).

Uma vez que a composição de Renato Russo constitui um texto poético, parece-nos que estaremos a entrar no domínio das variações literárias, excluídas dos níveis de língua, pois prevalece a finalidade artística sobre a prática/objectiva.

Pergunta:

Os dicionários brasileiros da língua portuguesa dizem que astorgano e astorguense (ambos substantivos e adjetivos) são os gentílicos de Astorga, cidade do Estado brasileiro do Paraná. Nada dizem, entretanto, sobre o gentílico de Astorga, cidade espanhola, razão pela qual vos indago sobre qual seria o gentílico da mesma.

Muito obrigado.

Resposta:

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009) regista astorguense (Astorga + -ense) como adjectivo «relativo a Astorga PR (do Paraná) ou o que é seu natural ou habitante», o que nos parece restringir tal gentílico à cidade brasileira do Paraná.

Por outro lado — uma vez que a pergunta apresentada pelo consulente se refere à cidade espanhola de Astorga e os dicionários portugueses consultados não atestam o gentílico de Astorga (cidade espanhola) —, o Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia Española, regista astorgano como gentílico dessa cidade: «1. adj. Natural de Astorga. U. t. c. s», «2. adj. Perteneciente o relativo a esta ciudad de la provincia de León, en España.»

De qualquer modo, tendo em conta que «existem várias formas de criar gentílicos, [sendo] as mais comuns as formadas por sufixos como -ês (português), -ense (macaense) e -ano (americano)» (Dicionário de Gentílicos e Topónimos, do Portal da Língua Portuguesa), pensa-se que serão legítimas as duas formas — astorgano e astorguense — como gentílicos portugueses das duas cidades.

Pergunta:

Por vezes leio: «Caminho para um homem novo em uma nova comunidade; caminho para um novo homem em uma comunidade nova.» Qual o significado do adjetivo novo colocado antes e depois do substantivo?

Resposta:

De facto, a colocação do adjectivo (antes ou depois do substantivo que caracteriza) implica variações a nível do seu sentido. É frequente ouvirmos frases do tipo: «Não és uma pessoa rica, mas és uma rica pessoa», o que não deixa marcas para dúvidas de que «uma pessoa rica» pressupõe a ideia objectiva de riqueza económica, enquanto a expressão «rica pessoa» remete para o campo semântico de um outro tipo de riqueza — a espiritual, a dos valores e princípios, significando «riqueza interior».

Tais leituras feitas a partir da colocação do adjectivo são objecto de análise dos gramáticos, que nos alertam para as particularidades do valor objectivo e subjectivo dos adjectivos devido à sua posição. Consideram, assim, Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, pp. 268-269) que se pode estabelecer previamente que:

a) Sendo a sequência SUBSTANTIVO + ADJECTIVO a predominante no enunciado lógico, deriva daí a noção de que o adjectivo posposto possui valor objectivo: noite escura, rapaz bom, dia triste, campos verdes.

b) Sendo a sequência ADJECTIVO + SUBSTANTIVO provocada pela ênfase dada ao qualificativo, decorre daí a noção de que, anteposto, o adjectivo assume um valor subjectivo: escura noite, bom rapaz, triste dia, verdes campos.

Essa é a razão pela qual «se colocam normalmente depois do substantivo os adjectivos que designam características muito salientes do substantivo, tais como forma, dimensão, cor, estado» (idem, p. 269), enquanto «o adjectivo anteposto assume, em geral, um sentido figurado» (idem, p. 270).