Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
67K

Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como se designa um conjunto de caracóis?

Resposta:

Não podemos deixar de assinalar que o nome/substantivo caracóis é a forma plural de caracol, representando mais do que um caracol. Ora, esta palavra não tem um só significado, designando realidades de vários domínios campos semânticos (da zoologia, do cabelo, da botânica e da anatomia):

— nome vulgar extensivo a diversos moluscos gastrópodes, pulmonados, com dois pares de tentáculos, o par superior com olhos nas pontas e concha leve, nocivos à agricultura (zoologia);

— madeixa de cabelo enrolado em espiral ou hélice (por extensão);

— trepadeira de até 10 m da família das leguminosas, com flores suavemente aromáticas, de grande efeito ornamental, e vagens pêndulas, nativa do Brasil, do Paraguai e da Argentina; flor da trepadeira do mesmo nome (botânica);

— parte do ouvido interno representada por um tubo enrolado em espiral (anatomia).

Portanto, tudo depende do sentido da palavra. Se nos quisermos referir aos caracóis do cabelo, poderemos utilizar o coletivo cacho1 – «um cacho de caracóis» – nome atestado no dicionário para designar «anéis de cabelo encaracolados em conjunto pendente» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010), e, para designar um conjunto de flores com esse nome, é lícito utilizar-se ramo – um ramo de caracóis.

Relativamente ao molusco e à trepadeira, não encontramos registo de nenhum coletivo na bibliografia específica.

1 O coletivo cacho designa, também, um conjunto de cerejas, de uvas, de bananas (Luiz Autuori e Oswaldo Proença Gomes, Nos Garimpos da Linguagem, p. 139).

Pergunta:

Gostaria de conhecer exemplos de animais epicenos.

Resposta:

Se se tiver em conta que se denonimam epicenos «os nomes de animais que possuem um só género gramatical para designar um ou outro sexo» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 196), apercebemo-nos de que há muitos casos de nomes epicenos, de que são exemplo os seguintes: a águia, a baleia, a aranha, a borboleta, a cobra, a foca, a formiga, a gaivota, a girafa, a hiena, a mosca, a onça, a pulga, a sardinha, a serpente, a tartaruga, a zebra, o besouro, o carapau, o condor, o corvo, o crocodilo, o gavião, o hipopótamo, o polvo, o pinguim, o rinoceronte, o rouxinol, o tatu, o tigre.

 

Apesar de tais nomes possuírem só um género, isso não significa que não se possa especificar o sexo dos animais cujo nome é epiceno. Para isso, acrescentam-se ao nome as palavras macho e fêmea: crocodilo-macho, crocodilo-fêmea.

Nota: Este tema tem sido objeto de reflexão de várias respostas em linha, de que são exemplo as seguintes: Substantivos epicenos; Substantivos epicenos, de novo; Substantivos epicenos e a marcação de género; Sobre...

Pergunta:

Qual a diferença entre ás (nome) e ás (verbo haver)?

Resposta:

Em primeiro lugar, importa dizer que não existe ás como forma verbal. Por não identificarmos essa forma verbal, consideramos que a consulente se queria referir a hás, do verbo haver. Será, por isso, nesta perspetiva que a nossa resposta será construída.

É de referir que, para além das duas palavras apresentadas pela consulente — ás e hás —, existe ainda outra com a mesma pronúncia — às. Como se trata de palavras homófonas — que têm exatamente a mesma forma fonética (pronúncia), mas com significados e grafias diferentes —, só pelo contexto se pode identificar a respetiva grafia, o que pressupõe o domínio da língua portuguesa.

Assim, a palavra ás (com acento agudo) está associada ao campo semântico do jogo (de cartas, de dominó ou de dados) e escreve-se para se designar uma determinada «carta de jogar, peça de dominó ou face de dado que tem uma pinta» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010). Trata-se, portanto, de um nome/substantivo masculino que teve origem no latim as, assis (unidade monetária fundamental para os Romanos). Exemplos: «o/um ás de copas»; «o/um ás de espadas»; «o/um ás de ouros»; «o/um ás de paus».

Decerto devido ao seu valor no jogo, a palavra ás é usada, também, para designar alguém «que se destaca em qualquer atividade, principalmente, em desportos de competição». Exemplos: «Ele é um ás do pedal.» «O João revelou-se um ás em Matemática.»

Por sua vez, a forma verbal hás (2.ª pessoa do singular do presente do indic...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a origem da expressão «ficar com um olho à Belenenses».

Resposta:

Na pesquisa realizada, não encontrámos nenhum registo dessa expressão na bibliografia específica sobre a origem das expressões correntes.

De qualquer modo, pensamos que poderemos depreender que o seu sentido (e a sua origem) se deva à associação com a cor que simboliza o clube Os Belenenses (também denominado o Belém ou os azuis do Restelo): o azul. 

De facto, quando alguém se magoa no rosto (ou porque é alvo de agressão, ou porque sofreu qualquer outro tipo de acidente que lhe deixasse marcas na cara), é natural que a zona dos olhos fique com um tom azulado, fruto de hematoma. Portanto, fica da cor do Belenenses.

Pergunta:

Choram como se o dia fosse noite

E só tu cuidas delas

Poisa a pomba na cruz

E só tu deixas-te ir

Neste fragmento de um poema, temos no último verso «e só tu deixas-te ir» em vez de (no meu entender e como deveria ser) «e só tu te deixas ir».

Este é um exemplo de entre muitos os que se ouvem no dia-a-dia. Se a frase fosse «e tu deixas-te ir», estaria correcta.

Esta forma, colocando o (verbo)-te... em vez do te (verbo)..., usada agora por estudantes, professores, jornalistas, políticos, etc., é muito comum nos nossos dias tanto na escrita como na oralidade e parece-me errada, mas não encontro bases para sustentar esta minha convicção.

Podem, por favor, esclarecer-me e, no caso de eu ter razão, dar-me bases gramaticais para que eu a defenda?

Resposta:

Em primeiro lugar, é de referir a particularidade da licença poética de todo o texto literário que o liberta da norma linguística, valorizando os efeitos sugeridos, a melodia, o ritmo, as sensações. Não nos podemos esquecer de que o que confere literariedade a um texto é a carga simbólica que ele transporta, a polissemia que é conseguida precisamente pela arte da escrita. Assim, a linguagem poética não está sujeita ao espartilho das regras e da norma linguística que qualquer outro tipo de texto deve respeitar. Por isso, o que seria um caso de incorreção num outro tipo de texto — como o da frase «e só tu deixas-te ir» — não pode ser encarado do mesmo modo por se tratar de um poema.

De facto, tal como o consulente sugere, esse seria um caso de próclise (colocação antes do verbo) pronominal em qualquer discurso comum, porque «o verbo vem antecedido de um advérbio (bem, mal, ainda, , sempre, , talvez, etc.) e não há pausa que os separe (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 313).

 

Relativamente à segunda questão apresentada:

Embora usemos com frequência os pronomes átonos, arbitrariamente e, na maioria das vezes, inconscientemente, a sua colocação é considerada «um dos pontos mais complicados da sintaxe portuguesa» (Pilar Vásquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1971, p. 493), pois, embora a sua posição lógica seja a ênclise (depois do verbo) — a posição normal do objeto direto ou indireto, as funções dos pronomes átonos —, «há casos em que, na língua culta, se evita ou se pode evitar essa colocação» (Cunha e Cintra, op. cit., p. 310), optando-se pela próclise....