Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Aproveitando a oportunidade que o site Ciberdúvidas oferece, apresento-lhes a minha dúvida relacionada com o emprego de pronomes (directos ou indirectos) nas orações subordinadas finais por eu não ter encontrado exemplos literários para encontrar uma possível solução.

Segundo a gramática de Cunha e Cintra, como regra geral da colocação dos pronomes átonos, no apartado para orações com um só verbo estabelece-se como lícita a próclise ou a ênclise dos pronomes que acompanham infinitivos soltos («Canta-me cantigas para me embalar»; «Para não fitá-lo, deixei cair os olhos»; «Para assustá-lo, os soldados atiravam a esmo»). Apesar de que a possibilidade existe, tem-me sido impossível encontrar casos semelhantes aos dois últimos exemplos.

Mas nas três orações dadas, os infinitivos embalar, fitar e assustar estão subordinados a outros (cantar, deixar cair e atirar respectivamente) através da preposição para. O que é que se entende então por oração com um só verbo e oração com infinitivo solto? Refere-se ao facto de a oração subordinada começar o período oracional, ou seria também lícita uma outra ordem sintáctica («Os soldados atiravam a esmo para assustá-lo»), mantendo assim a ênclise no infinitivo?

Grato pela atenção.

Resposta:

Em Portugal, no ensino não superior, tem havido alguma tradição, cada vez mais combatida, de considerar o tipo de finais que está em apreço, não como orações, mas como complementos circunstanciais de fim. Talvez por isso surja a referência a infinitivos soltos, embora na página 153 da mesma gramática, quando se fala dos adjuntos adverbiais de fim, se não dê nenhum exemplo em que ocorra um verbo. Além disso, na página 609, dá-se como exemplo de final infinitiva «Conheces-lhe a vida para poderes afirmar tal coisa.»

Concordo, pois, consigo, e, ao que parece, a própria gramática de Cunha e Cintra também. Nos exemplos que apresenta, e que repito numerados, estamos perante frases complexas, em que a subordinada é uma oração infinitiva final.

1) «Canta-me cantigas para me embalar.» (Guerra Junqueiro)
2) «Para não fitá-lo, deixei cair os olhos.» (Machado de Assis)
3) «Para assustá-lo, os soldados atiravam a esmo.» (Carlos Drummond de Andrade)

A colocação do pronome nos exemplos 2 e 3 também me causa muita estranheza. Creio tratar-se de uma característica do português do Brasil, que, curiosamente, ainda que os dois autores citados sejam brasileiros, não é referida como específica daquele país nas áreas da gramática citada em que esses aspectos são focados. Para me situar e mais facilmente poder ajudá-lo a encontrar outros exemplos, consultei o Corpus do Português. Introduzi como tema de pesquisa a expressão «para fazê-lo» e obtive 63 exemplos como resposta, todos de textos oriundos do Brasil, o que, de alguma forma, reforça a minha intuição de que se trata de uma estrutura do português do Brasil.

Bom trabalho!

Pergunta:

A forma de plural com que mais frequentemente deparamos é "sociais-democratas", mas também já li e ouvi a forma "social-democratas". "Social-democrata" pode ocorrer, conforme o contexto, como substantivo ou como adjectivo, o que, de acordo com as regras de formação do plural dos nomes compostos e dos adjectivos compostos que encontramos em Celso Cunha e Lindley Contra, não será indiferente. Na verdade, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, pode ler-se:

a) relativamente aos substantivos compostos (pág. 189): «geralmente ambos os elementos tomam a forma de plural quando o composto é constituído de dois substantivos, ou de um substantivo e um adjectivo»;

b) relativamente aos adjectivos compostos (pág. 253): «Nos adjectivos compostos, apenas o último elemento recebe a forma de plural».

De acordo com estas regras, "social-democrata" terá, então, duas formas diferentes de plural, conforme ocorra como substantivo ou como adjectivo?

Resposta:

Segundo algumas gramáticas e alguns dicionários, assim é. No entanto, a meu ver, na formação de adjectivos compostos, há, sobretudo, dois casos a ter em conta:

a) o primeiro adjectivo do composto é uma forma truncada, ou seja, incompleta do adjectivo, como se verifica em afro-americano; luso-brasileiro, franco-português, etc.

Nestes casos, apenas o segundo elemento, indubitavelmente, faz plural. Creio mesmo que este é o primeiro tipo de adjectivos compostos a surgir, sendo, talvez, responsável pela norma descrita nas gramáticas e assumida por alguns dicionários.

b) os dois adjectivos são palavras plenas, como em surdo-mudo, trabalhador-estudante, autor-compositor, etc.

Nesta situação as gramáticas e os dicionários apresentam o plural das duas palavras. É neste grupo que integro social-democrata, pelo que defendo que se use sempre sociais-democratas, seja o composto usado como adjectivo, seja como nome.

 

[Sobre esta controvérsia, cf. Ainda e (quase sempre) social-democratas/sociais-democratas? + Ainda sobre o plural de social-democrata + Social-democratas +

Pergunta:

Gostaria de saber como se chama o processo, que ocorre no falar do arquipélago da Madeira, que consiste na repetição do i ou u quando estes são sílabas tónicas seguidas por outra vogal, por exemplo: rua é lido como "ru-ua"; fazia — "fazi-ia"; frio — "fri-io"; riu — "ri-iu"?

Resposta:

Sempre que temos duas vogais iguais seguidas e pronunciadas separadamente, estamos perante um hiato. É esse o contexto do processo que descreve, que não tem representação na escrita, sendo registado apenas na oralidade. Luísa Segura refere-se ao fenómeno como ditongação, o qual consiste em as vogais altas acentuadas, /i/ e /u/, serem articuladas como ditongos: /i/ passa a [ɐj ] ou [ɨj], e /u/, [ ɐw]: navio [nɐv´ɐju] ou [nɐv´ ɨju]; farinha [fɐɾɐjɲɐ]; aqui [ ɐkɐj ]; lua [lɐwɐ ]; rua [Rɐwɐ ].

Pergunta:

Na frase «Era a primeira vez que ia participar numa festa em casa alheia ainda por cima distante da sua», como classifico a expressão «ainda por cima» quanto à classe de palavras?

Resposta:

A expressão em análise ocorre no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), no verbete ainda, sendo, aí, considerada locução adverbial.

No entanto, talvez valha a pena reflectir um pouco acerca desta locução. Dizem os gramáticos que a estrutura habitual de uma locução adverbial é aquela em que temos uma preposição seguida de um nome, sem dúvida, de um adjectivo, de novo, ou de um advérbio, de longe. Ora o que temos, em ainda por cima, é, ao que parece, uma locução adverbial, de valor locativo, por cima, intensificada, ou destacada, por um advérbio, ainda. Na sua globalidade, a locução veicula uma ideia de acréscimo que se destaca, como se se tratasse do culminar de um acontecimento, ou de uma série, mais ou menos longa, de acontecimentos. O valor locativo torna-se abstracto, quase se dissolve. Além disso, assume um certo valor parentético, como se fosse uma paragem que o emissor, ou locutor, fizesse, para criar expectativa.

Na frase em apreço a locução introduz e destaca uma informação «distante da sua (casa)» que dá maior relevo ao acontecimento principal: ser a primeira vez que se participa em algo. Estamos, pois, perante uma locução que poderíamos associar aos advérbios de intensidade e grau, incidindo a intensificação, ou destaque, directamente na expressão «distante da sua (casa)», mas, porque o advérbio ainda estabelece a relação entre elementos, produzindo efeito em toda a frase.

Note-se que é comum essa ligação ser reforçada pela presença da conjunção copulativa: «Era a primeira vez que ia par...

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida, que não consegui solucionar mesmo após troca de impressões com colegas. Como se dividem e classificam as orações da seguinte frase, extraída de um verso contido num poema do heterónimo de Pessoa, Alberto Caeiro: «Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso»?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A poesia não é o tipo de texto mais propício à identificação de estruturas gramaticalmente prototípicas, uma vez que ele obedece a, ou tem subjacente, uma criatividade literária ou artística, que justifica, em nome do estilo, situações de fuga à lógica gramatical que noutras situações seriam indesculpáveis. Vejam-se, por exemplo, as frases de Bernardo Soares, no Livro do Desassossego: «Quantos sou? Quem é eu?»

No entanto, no exemplo em apreço, estamos perante uma estrutura que, pelo menos em parte, ocorre com alguma frequência em frases como «Se te digo isto, não é porque te queira mal, mas porque sou teu amigo».

Tentemos, então, a análise dos versos em causa:

«Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,/mas porque a amo, e amo-a por isso.»

Oração subordinante: «não é porque saiba o que ela é»

Porém, esta subordinante é algo complexa: efectivamente, estamos perante uma oração com um verbo copulativo, na qual o predicativo do sujeito é uma oração causal, cujo verbo, por sua vez, se constrói com uma completiva, que, neste caso, é uma relativa sem antecedente. Assim, a oração «não é porque saiba o que ela é» tem a seguinte estrutura interna:

      Subordinante – «não é»
      Predicativo do sujeito – «porque saiba»
      Subordinada substantiva completiva – «o que ela é»

Esta oração subordinante está coordenada a outra – «mas porque a amo» –, que também tem a sua complexidade, uma vez que a oração coordenada tem o verbo elidido, tendo o predicativo do sujeito expresso: «mas [é] porque a amo». Note-se o paralelismo, ainda que contrastivo, entre esta e...