Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria, se possível, de esclarecer uma dúvida linguística e gramatical. Nas situações em que a função sintática, seja de sujeito ou complemento verbal, aparece com o núcleo referencial "deslocado" do núcleo sintático, seria lícito considerar tal núcleo referencial como um adjunto adnominal? Exemplos:

«A maioria das pessoas não se convenceu disso.»

«Das pessoas» pode, neste caso, ser considerado como adjunto adnominal? Sabendo que o núcleo do sujeito é «maioria», então a minha dúvida é se, quando ocorre expressões partitivas, a função inteira pode ser entendida como uma coisa só, sem adjuntos. Outro exemplo:

«Tomei um pouco de café.»

«Pouco», núcleo do objeto direto, «um» adjunto adnominal, e quanto a «de café», como núcleo referencial, pode ao mesmo tempo ser entendido como adjunto adnominal?

Eu sei que estou misturando duas coisas... análise sintática e semântica, é que muitas vezes as duas. Para mim, não são tão separáveis, pois tenho a impressão de que as estruturas sintáticas, a grosso modo, não deixam de ser uma cristalização de conteúdos semânticos — com o perdão pela divagação de um leigo sobre o assunto.

Esta dúvida sobre expressões partitivas me surgiu quando eu estava lendo a gramática de José Carlos de Azeredo (do instituto Houaiss) e ele diz que em «uma xícara de café» o «de café» só seria entendido como uma locução adjetiva quando não se refere ao conteúdo, mas sim ao tipo de xícara. Sei que este último exemplo não se trata de uma expressão partitiva, mas, mesmo assim, o raciocínio parece análogo.

Obrigado.

Resposta:

Antes de mais, há que distinguir determinante de adjunto adnominal. Em «Tomei um pouco de café», «um» é um determinante, uma palavra que especifica o nome a que se liga e que, tradicionalmente, não se classifica de forma isolada numa análise sintáctica.

Adjunto adnominal, por seu lado, corresponde a um conceito sintáctico, que de alguma forma pode associar-se, para não dizermos opor-se, a complemento nominal. A função do adjunto adnominal é a de restringir o âmbito do nome, fornecendo acerca dele informações consideradas acessórias, contrariamente ao que acontece com o complemento do nome que se associa ao nome completando o seu pleno sentido. Por vezes, torna-se difícil distinguir as duas funções — adjunto ou complemento — sobretudo porque, na maioria dos casos, o complemento do nome, contrariamente ao que acontece, geralmente, com o complemento do verbo, pode ser omitido.

Nos dois exemplos que apresenta, creio que estamos perante complementos do nome, pois as duas expressões — «das pessoas» e «de café» — veiculam informação necessária à plena compreensão dos nomes a que se ligam. Assim, em 1, estamos perante uma frase cujo sujeito tem como núcleo uma expressão partitiva e que é constituído por essa expressão e pelo seu complemento:

1. «A maioria das pessoas não se convenceu disso.»

a. Sujeito: «a maioria das pessoas».
i. Complemento do nome: «das pessoas».

Note-se ainda que a concordância está feita com o núcleo, pelo que é ele que se constitui o referente dessa mesma concordância.

Em 2, «de café» é também complemento do nome, pois, tal como no caso anterior, contribui para completar, ou esgotar, o seu sentido.

2. «Tomei um pouco de café.»

Pergunta:

Estou neste momento a fazer um trabalho sobre o novo acordo ortográfico e surgiu-me uma dúvida: cor-de-rosa, porque é consagrada pelo uso com hífenes, é considerada uma palavra composta, certo? Mas, então «cor de laranja», por não ter os hífenes, já não é uma palavra, mas, sim, uma locução? A mim, parece-me que o que distingue uma «locução substantiva» de um «composto» (morfossintático, neste caso) é praticamente nada, pois ambas as estruturas apresentam um comportamento morfológico (a flexão do plural faz-se de forma igual, por exemplo), sintático (ambas ocupam na frase a posição típica de nome ou adjetivo) e semântico semelhantes. O mesmo em relação a «arco-da-velha» (mantém o hífen) e «pé de cabra» (perde o hífen). Atualmente, sabemos que não é o hífen que confere a uma estrutura o estatuto de palavra, pois há tanta oscilação entre o uso e o não uso do hífen neste tipo de estruturas e não é por isso que deixamos de as «sentir» como um todo, independentemente do grau de lexicalização que apresentem. Gostaria muito de saber o que acham.

Agradeço desde já a vossa atenção.

Resposta:

Poderemos dizer que estamos perante uma situação de lexicalização quando, independentemente da existência ou não de hífen, os elementos que constituem uma dada unidade de sentido, noutras circunstâncias, poderiam ter significado individual, ou seja, poderiam ser um grupo ou sintagma. Tomemos como exemplo abre-latas. Estamos perante a lexicalização de algo que pode ocorrer em outros contextos: «O João abre latas todos os dias», «Este objeto abre latas». Simultaneamente, a lexicalização é tão profunda, que estamos perante uma palavra composta. Aliás, verbo + nome é um dos processos de composição produtivos em português, contrariamente ao que está subjacente às palavras em apreço — nome + de + nome.

O grau de lexicalização de uma expressão pode ser diferente em diferentes momentos da língua. E em cada momento há expressões com diversos graus de lexicalização; o que conduz a que algumas das expressões lexicalizadas sejam, por exemplo, introduzidas em dicionários, com o estatuto pleno de palavras, e outras o não sejam. No caso dos dois exemplos que apresenta — cor-de-rosa e cor de laranja, ambos ocorrem no dicionário da Porto Editora, disponível gratuitamente. E ambas surgem também no Vocabulário Ortográfico do Português do ILTEC. No caso de cor-de-rosa, apresenta duas variantes, com hífen e sem hífen.

Vale a pena referir por um lado, que o Dicionário Terminológico contempla apenas as locuções prepostivas, adverbiais e conjuncionais; por outro lado, que o novo acordo, em si, não tem influência no co...

Pergunta:

Usando a conjunção pois será correcto aplicar uma próclise de seguida?

Ex.: «(...) pois me comprometi a fazê-lo.»

Grato pela atenção.

Resposta:

A próclise, nessa situação, não é comum no português europeu. Devemos escrever «(…) pois comprometi-me».

Esse é, aliás, um dos aspectos referidos, por vezes, por quem defende que pois é uma conjunção coordenativa, embora haja também muito quem, com razão, considere que não estamos perante uma verdadeira conjunção.

Pergunta:

Sou professora na Colômbia para falantes hispanos, e uma aluna quer saber a diferença entre trocar e mudar. Eu sei como usar esses dois verbos, mas gostaria de dar-lhe uma boa resposta e bem completa, se possível com exemplos.

Muito obrigada, fico no aguardo da sua resposta.

Resposta:

O verbo mudar tem alguns sentidos semelhantes aos de trocar: «alterar», «substituir».

Ex.: «Trocaste os móveis» (= Mudaste de móveis. Substituíste os móveis).

Além disso, mudar significa:

a) Deslocar-se de um local para outro: «Mudaste de casa.»
b) Alterar o comportamento: «Estás mudado.»
c) Organizar as coisas de outro modo: «Mudaste os móveis» (diferente de «Mudaste de móveis», que significa que foram comprados móveis novos).
d) Desviar, tomar outro sentido: «O carro mudou de direcção.»
 

Por seu lado, trocar, além do sentido já apontado de «alterar, substituir», significa:

a) Permutar: «Trocámos experiências»; «Trocámos de cargo.»
b) Pegar numa coisa em vez de pegar noutra: «Trocou os documentos.»
c) Cambiar: «Trocou euros em dólares.»
d) Dizer uma coisa em vez de dizer outra: «Trocou os discursos» (é diferente de «Mudou o discurso», em que o que se diz é que houve mudança de comportamento). 
 

Bom trabalho!

Pergunta:

Quando se fala da transformação do discurso directo para o indirecto, refere-se sempre a passagem do enunciado em 1.ª ou em 2.ª pessoa para enunciado em 3.ª pessoa e exemplifica-se com enunciados onde isso acontece, porém parece-me que há enunciados em 1.ª pessoa ou em 2.ª pessoa que no discurso indirecto se mantêm nessas pessoas. Vejamos, por exemplo, os seguintes enunciados: Discurso directo: «— Sou estudante.»/ Discurso indirecto: «Afirmou que era estudante.» Mas também pode ser: «Afirmei que era estudante.» Discurso directo: «— Fui a minha casa.» Discurso indirecto: «Disse que tinha ido a sua casa.» Mas também pode ser: «Eu disse que tinha ido a minha casa.» No discurso indirecto, os enunciados também se fazem na primeira pessoa ou 2.ª pessoa. Estou errada? As gramáticas não explicam estes casos.

Agradeço uma resposta.

Resposta:

Segundo Cunha e Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, o «discurso indirecto pressupõe um tipo de relato de carácter predominantemente informativo e intelectivo, sem a feição teatral e actualizadora do discurso directo», p. 632. Por essa razão, as regras do discurso indirecto previstas nas gramáticas apontam sempre para uma situação de discurso distanciado em que alguém informa acerca do que outrem disse. Ou seja, o narrador, ou locutor, incorpora no seu próprio discurso o discurso das personagens, ou dos interlocutores. A par desta situação, os autores da gramática já indicada apontam ainda para a possibilidade de narrador e personagem se confundirem. Dão como exemplo a seguinte frase: «Engrosso a voz e afirmo que sou estudante», p. 632.

Temos, pois, num discurso da primeira pessoa, a inserção de um verbo declarativo que introduz uma completiva,  como acontece no discurso indirecto, apesar de as marcas serem de primeira pessoa. Creio que o mesmo acontece em outros contextos que não obedecem estritamente às regras gramaticais previstas. Isso acontece sobretudo quando, em presença, se altera um discurso directo em indirecto, quer por repetição da mesma pessoa quer por interpelação de outro. Nesta situação, apesar de haver uma «feição teatral e actualizadora do discurso directo», como referem os autores da gramática já citada, ocorre muitas vezes a introdução do verbo declarativo e subsequente oração completiva, como nos exemplos abaixo: 

1. «Estás a dizer que vais ao cinema?»
2. «Disseste que ias ao cinema?»
3. «O que disseste?» 
«Disse que vou ao cinema.»

O problema que se levanta a um professor é saber até onde ir na explicação que apresenta aos seus alunos. E isso dependerá sempre do nível de conhecimento e de maturidade linguística que a turma, ou o aluno, tiver e, claro!, ...