Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a análise sintáctica completa da seguinte estrofe:

«Bóiam leves, desatentos,

Meus pensamentos de mágoa,

Como, no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas.»

Obrigado.

Resposta:

A estrofe pertence ao poema Bóiam leves, desatentos, de Pessoa ortónimo. É constituída por uma frase complexa, que tem a seguinte configuração na ordem directa:

«Meus pensamentos de mágoa bóiam leves, desatentos, como as algas, cabelos lentos do corpo morto das águas, [bóiam] no sono dos ventos.»

Parto do princípio de que a sequência introduzida por como é uma oração subordinada comparativa cujo verbo subentendido é o mesmo que ocorre na frase principal, «meus pensamentos de mágoa bóiam leves, desatentos». A análise proposta é feita no quadro da gramática tradicional. Assim:

1. Oração subordinante: «Meus pensamentos de mágoa bóiam leves, desatentos»

sujeito: «meus pensamentos de mágoa»

complemento determinativo: «de mágoa»

predicado: «bóiam»

predicativo do sujeito ou anexo predicativo: «leves, desatentos»

2. Oração subordinada comparativa: «como as algas, cabelos lentos do corpo morto das águas, [bóiam] no sono dos ventos»

sujeito: «como as algas, cabelos lentos do corpo morto das águas»

aposto: «cabelos lentos do corpo das águas»

predicado (subentendido): «bóiam»

complemento circunstancial de lugar1: «no sono dos ventos»

1Na terminologia gramatical brasileira usa-se o termo

Pergunta:

O fenómeno da metafonia nominal caracteriza algumas palavras (aquelas especificadas nas transcrições dos dicionários mais importantes), ou é um fenómeno que, talvez por analogia, caracteriza todos os nomes e adjectivos que acabam com -o e que têm /'O, 'E/ (timbre aberto) no masculino singular?

Por exemplo, nas seguintes palavras plurais, o timbre da vogal é fechado, ou aberto (tendo em conta que o dicionário da Academia indica um timbre fechado das formas singulares, mas não especifica que os plurais tenham metafonia)?

«os abandonos», «os aboios», «os abonos», «os abordos», «os abortos», «os acordos», «os adornos», «os afogos», «os aforros», «são agarenos», «os albedos», «os alhos-porros», «os alvoroços», «os alvorotos», «são amenos», «os amojos», «são anojos», «os antegostos», «os antegozos», «os anterrostos», «é antioquena», «são antioquenos», «os antojos», «os antracenos», «os apodos», «os apojos», «são arabescos», «os arremessos», «os arrochos», «os arroios», «os arrojos», «os arrolos», «os arrotos», «os assertos», «os assopros», «os aterros», «os atropelos», «os autocontrolos», «os autogovernos», «são avessos», «os azotos».

É possível que também a consoante nasal heterossilábica iniba a abertura da vogal acentuada, como em abandonos, abonos, agarenos, amenos?

Ou será que a metafonia depende do grau em que a palavra é culta?

Resposta:

Já aqui temos falado várias vezes de metafonia nominal. Relaciona-se principalmente com a alternância, na sílaba tónica de nomes e adjectivos masculinos, entre o fechado no singular e o aberto no plural: n[o]vo ~ n[ɔ]vos. As formas de feminino, se existirem, também têm timbre aberto: n[o]vo ~ n[ɔ]va, n[ɔ]vas.

Tradicionalmente, tende-se a descrever a metafonia como fenómeno que afecta apenas o o tónico e que se localiza nas formas do plural e do feminino de nomes e adjectivos. Com efeito, Celso Cunha e Lindley Cintra (Breve Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1994, págs. 136/137) dizem que «alguns substantivos, cuja vogal tónica é o fechado, além de receberem a desinância -s, mudam, no plural, o o fechado [o] para aberto [ɔ]» (sublinhado nosso). Ou seja, parece que, na perspectiva de Cintra e Lindley, as formas de plural é que são metafónicas. Contudo, a linguística histórica e a fonologia moderna mostram que é no singular que se verifica a metafonia, porque:

a) do latim para o português, foi o o final que fechou um ó aberto ([ɔ]) tónico para ó fechado ([o]) no singular mas não no plural: fŏcum > f[ɔ]go > f[o]go mas plural f[ɔ]gos; nŏuum > n[ɔ]vo > n[o]vo mas plural n[ɔ]vos (cf. Edwin B. Williams, Do Latim ao Português, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, págs. 106, 126 e 134);

b) do p...

Pergunta:

Eu gostaria de saber qual é o significado da sentença «te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples» escrita no poema Estrela da Manhã, de Manuel Bandeira. Eu não encontrei o significado da palavra mafuás e a relação entre novena e cavalhada.
Obrigado!

Poema:

A Estrela da Manhã

Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte

Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã

Resposta:

Segundo o Dicionário Houaiss, as palavras em questão têm os significados seguintes:

mafuá (substantivo masculino):

Atendendo ao contexto, a palavra significa «baile popular»; outras acepções possíveis da palavra são «[regionalismo brasileiro] parque de diversões ou feira de prendas e jogos, esp. com transmissão de música ruidosa nos alto-falantes»; «ausência de ordem, de arrumação; bagunça, confusão, rolo». O termo tem origem obscura, mas pode estar relacionado com o quicongo mfwá, «que está muito cheio».

novena

As acepções mais adequadas ao contexto são «série de orações e práticas litúrgicas realizadas durante um período de nove dias para obtenção de alguma graça divina», «período de nove dias em que estas cerimônias se realizam» e «composição ou cântico para esta cerimônia litúrgica»; mas a apalavra tem outros significados: «conjunto de nove entidades, seres, objetos etc. de igual natureza», «qualquer período de nove dias», «[como regionalismo brasileiro] castigo, aplicado a escravos, que consistia em açoitá-los durante nove dias seguidos».

cavalhada

O contexto é compatível com a definição da palavra como «folguedo, ainda vivo no Brasil, em que cavaleiros ricamente trajados se exibem numa encenação com laivos marciais, em uma seqüência de jogos e representações cuja duração pode se estender por três dias, relembrando as cavalhadas medievais (mais usado no plural)». Outras acepções: «[regionalismo do Brasil] grande quantidade de cavalos; cavalaria, manada»; «[regionalismo brasileiro] gado cavalar»; «empresa arriscada»; «feito excepcional, heróico; façanha, proeza»; «torneio que servia como exercício militar nos intervalos das guerras e onde nobres...

Pergunta:

O que são arcaísmos fonéticos?

Resposta:

Em princípio, os arcaísmos fonéticos encontram-se em variedades conservadoras do português. Por exemplo, os dialectos portugueses setentrionais mantêm, no vocalismo e no consonantismo, características que podem ser vistas como arcaicas: o ditongo [ow] em ouro ou roubar1; e o [tʃ] em chamar ou  cacho. No entanto, mesmo no dialecto que é considerado padrão, baseado tradicionalmente no falar das classes cultas de Coimbra e Lisboa, há características que podem ser tidas como arcaicas: o ditongo representado por <ei> em maneira, palavra que noutros dialectos apresenta uma solução inovadora, a monotongação de [ej] em [e] — man[e]ra, como se diz em quase todo o Centro-Sul português. Mesmo assim, é de assinalar que tal ditongo não é pronunciado hoje no português-padrão como [ej] mas sim como [ɐj], cujos elementos têm maior contraste entre si (dissimilação). Por outras palavras, apesar de continuar a existir um ditongo como na Idade Média, a sua articulação é diferente, porque o elemento principal do ditongo, [e], passou a [ɐ] para o diferenciar melhor de [j].

1 Na realidade, permanece um ditongo, mas os seus elementos evoluíram no sentido de uma maior diferenciação (dissimilação), pelo que, em muitos dialectos setentrionais portugueses, [ow] passou a [ɐw]. Quer dizer que a pronúncia [ɐw] do ditongo de ouro e roubar é também uma inovação e não é, em rigor, um arcaísmo (ver Luís F. Lindley Cintra, Estudos de Dialectologia Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa Ed...

Pergunta:

Dúvida que sempre ocorre em nosso setor: plural de dispenser e banner.

Arriscaria em dizer que é "dispenseres" e "banneres".

Correto ou errado?

Por favor, preciso dessa orientação.

Resposta:

As palavras em questão são de origem inglesa e ainda não foram adaptadas ao português, pelo que adoptam o plural inglês: dispensers e banners. Como se trata de termos ainda não aportuguesados, aconselha-se que sejam escritos entre aspas ou postos em itálico.

Banner significa, em publicidade e informática, «curta mensagem publicitária em um site da Internet, com link para a página do anunciante» (ver Dicionário Houaiss), e dispenser tem o significado genérico de «distribuidor», embora possa ser o mesmo que caixa quando surge em cash dispenser («caixa automático»).