Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Antes de mais, parabéns pelo excelente trabalho aqui feito.

Gostaria de tirar dúvidas em relação ao uso da preposição de conjuntamente com os artigos definidos a, o, as, os.

Em documentos antigos dos anos 60 e 70 vê-se na maior parte das vezes termos como: «Associação dos Estudantes», «Junta da Freguesia», «Concelho da Chamusca»; hoje em dia apenas se vê «Associação de Estudantes», «Junta de Freguesia», «Concelho de Chamusca», etc., etc., etc. O que se terá passado?

Resposta:

Sem mais contexto a acompanhar as expressões em causa, é difícil explicar exactamente o que se passou. Mas calculo que, relativamente a «associação dos estudantes» e «junta da freguesia», deve ter mudado um pouco a perspectiva em que se encaravam os estudantes e a freguesia: antes tratava-se de indicar que esses estudantes e essa freguesia já estavam identificados e eram conhecidos — são uns certos estudantes e uma certa freguesia. O uso veio a impor a omissão do artigo nas referidas expressões, tornando-as mais genéricas e dando-lhes uma função muito semelhante à de um adjectivo: «associação de estudantes» = «associação estudantil».1

A alternância entre «concelho da Chamusca» e «concelho de Chamusca» é de outra ordem, porque se prende com o uso de artigo definido com topónimos. O uso de artigo indica normalmente que o nome de lugar tem origem num substantivo comum. José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, considera que Chamusca tem origem no substantivo comum chamusca, o que explicaria o artigo definido associado. Regista ainda Chamusco, também um substantivo comum convertido em topónimo, e atesta o seu uso com artigo definido (Monte do Chamusco).2 Assim, concluo que Chamusca se tem usado com artigo definido («a Chamusca»).

Mas arrisco uma explicação para a perda de artigo em «concelho de Chamusca», que não considero melhor que «concelho da Chamusca». Penso que a supressão do artigo é, para muitos falantes, sinal de prestígio, uma vez que muitos nomes de cidades e vilas se usam sem artigo por não terem origem em nomes comuns (Lisboa é um bom exemplo, apesar de «o Porto» ser um bom contra-exemplo: tem artigo e nem por isso deixar de ter prestígio). Sugiro, pois, que a expressão «concelho de Chamusca» seja encar...

Pergunta:

A frase «Eu vi os leões matarem as zebras» me parece inquestionavelmente correta.

No entanto, a frase «Eu vi os leões matar as zebras» já me suscita sérias dúvidas. Eu vou explicar por quê.

É comum ver expressões deste género:

«Eu vi-te matar zebras» ou «Eu vi-os matar zebras», em vez de «Eu vi-te matares zebras» ou «Eu vi-os matarem zebras».

Não só no Brasil como em Portugal...

Resposta:

A comparação que faz entre as duas primeiras frases permite formular a seguinte regra:

I. Depois de verbos de percepção (ver, ouvir, sentir), usa-se o infinitivo flexionado numa oração subordinada completiva infinitiva, se o sujeito desta oração for um grupo nominal.

Mas a esta regra podem acrescentar-se mais duas.

II. Usa-se o infinitivo não-flexionado, se o sujeito semântico da oração completiva for realizado por um pronome átono com a função de complemento direto do verbo de percepção.

(1) «Eu vi-te matar zebras.»

(2) ?«Eu vi-te matares zebras.»

A frase (1) está correta, mas (2) tem restrições.

III. Também se prefere o uso do infinitivo não-flexonado, se na oração de infinitivo o sujeito, realizado por grupo nominal se encontrar em posição pós-verbal (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, págs. 484/485):

(3) «Eu vi correr os leões.»

Assinale-se que III só se aplica a verbos intransitivos. Com verbos transitivos cujo sujeito é um grupo nominal, criam-se dificuldades à concordância, porque a frase se torna ambígua:

(4) ?«Eu vi matar os leões as zebras»

Sem contexto nem acesso a conhecimento enciclopédico, fica disponível a leitura segundo a qual são as zebras que matam os leões.

É, portanto, preferível o grupo verbal com função de sujeito se encontrar antes do respectivo predicado, na oração comp...

Pergunta:

A palavra "justiciável" existe na língua portuguesa? Se sim, qual é o seu significado? Que outros sinónimos poderiam ser usados no seu lugar?

Muito obrigado por toda a atenção dispensada.

Resposta:

O adjectivo "justiciável" pressupõe o verbo "justiciar", que não se encontra atestado. O verbo dicionarizado é justiçar, «punir com suplício corporal» (ver Dicionário Houaiss), que pode ser a base de derivação do adjectivo justiçável, registado no Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado. Trata-se da forma mais correcta, se com ela se quer dizer «que pode ser sujeito a punição sob a forma de suplício corporal».

Pergunta:

O que é partícula partitiva? Veja essa questão e por favor me tira essa dúvida: 6) Em «só não fez daquilo o que não estava em suas forças», o pronome «daquilo» apresenta partícula partitiva que também vemos em:

a) Desta manhã não passaremos.

b) Todos pudemos comer das maças colhidas.

c) Avisei-te para não agir desse modo.

d) Nunca duvidei daquele amigo.

Obs.: a resposta correta é o item b), agora me respondam por quê. O que é partícula partitiva?

Agradeço a resposta.

Resposta:

Há quem fale em partícula partitiva, mas outros preferem o termo artigo partitivo, como Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (2003); diz este gramático (idem, pág. 161):

«A língua portuguesa de outros tempos empregava do, da, dos, das, junto a nomes concretos para indicar que os mesmos nomes eram apenas considerados nas suas partes ou numa quantidade ou valor indeterminado, indefinido:

Não digas desta água não beberei.

É o que a gramática denomina artigo partitivo. Modernamente, o partitivo não ocorre com a freqüência de outrora e, pode-se dizer, quase se acha banido do uso geral, slavo pouquíssimas expressões em que ele se manteve, mormente nas idéias de comer e beber

Nesta pasagem, parece-me que Bechara quer dizer que, mais do que um artigo partitivo, há ainda hoje em português uma construção partitiva que é marcada pela preposição de contraída com artigo («da água) ou outro determinante («desta água»). Seja como for, a opção b) do exercício referido é a correta, pois o valor de «das» em «das maçãs colhidas» corresponde à definição de partícula ou artigo partitivo.

Pergunta:

Qual o significado e a origem das palavras processo, heteroavaliação, negociação, excelência, qualidade e monitorização?

Resposta:

Apresentam-se a seguir, de modo muito sumário, o significado genérico e a etimologia dos termos apresentados, com base no Dicionário Houaiss:

processo: «acção de proceder»; substantivo que tem origem no «radical de processum, supino de procedĕre, "ir na frente, avançar, progredir, sair de, aparecer; crescer, desenvolver-se; aparecer, nascer; suceder, acontecer; ter bom êxito, sair-se bem; aproveitar a, ser útil para"».

heteroavaliação: «acto ou efeito de avaliação de um ou mais indivíduos por outro(s)»; palavra formada em português, seguindo um modelo morfológico corrente noutras línguas (p. ex., francês): hetero-, «outro», do grego héteros,a,on, «outro, diferente» + avaliação, substantivo derivado de avaliar, por sua vez, derivado de valia; este substantivo é também ele um derivado do verbo valer, com origem no latim valĕo,es,ui,ĭtum,ēre, «ser forte, valente, vigoroso; ter força, ter crédito; exceder, levar vantagem».

negociação: «acto de negociar»; palavra formada em português: derivada de negociar, verbo adaptado do latim negotĭor, āris, ātus sum, āri «comerciar, negociar».

excelência: «qualidade do que é excelente»; do latim ex...