Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Muita estranheza me provocou a vossa resposta n.º 26759 sobre a forma «Bahrein» e o respectivo gentílico. Não é minha intenção corrigir-vos, e nem refutar a vossa resposta, mas gostaria de expor a minha interpretação. Eu sempre conheci o nome do país como «Bahrain» (بحرين). Sabendo eu que a língua árabe só possui três vogais (i, a, u) parece-me estranho uma grafia com e. Consequentemente, sempre pronunciei a parte final com um ditongo oral seguido de consoante nasal [ajn], e nunca como ditongo nasal [ɐ̃j] (como se fosse «ãe»). Por isso, provoca-me estranheza o «m» em «baremita»... Parece-me haver pequenas confusões sucessivas entre a escrita e a pronúncia. Deduzo que, a partir da forma escrita «Bahrein», alguém deve ter pronunciado as três últimas letras como se fossem um ditongo nasal (os Brasileiros, ao verem uma palavra escrita com uma consoante final nasal, pronunciam sistematicamente com uma vogal nasal, mesmo quando essa palavra não pertence à língua portuguesa!). Depois, a partir da pronúncia com ditongo nasal, aportuguesou-se a palavra para «Barém» (quando talvez, para ser mais fiel à pronúncia original, podia ter sido algo como «Baraine», por exemplo). E seguidamente, a partir da forma escrita «Barém», forjou-se o gentílico «baremita», sem no entanto nunca ter existido o fonema «m» que justificasse tal formação. Conforme o que eu tinha dito antes, não pretendo ter a arrogância de corrigir-vos. Mas talvez os «fazedores» da língua portuguesa possam ter um critério mais uniforme quando tentarem aportuguesar nomes estrangeiros: ou apoiam-se unicamente na grafia, ou apoiam-se unicamente na pronúncia. Obrigado pela atenção.

Resposta:

Barém é forma tradicional, resultado do modo como os portugueses do século XVI interpretaram a terminação "-ayn" da palavra árabe (um dual, de acordo com o Dicionário Houaiss). As formas Barein e Bareine surgem atestadas no português do Brasil (ver Dicionário Houaiss) e afiguram-se-me de introdução ou criação recente, talvez influenciadas por transcrições inglesas de uso internacional. Quanto à forma "Baraine", é certamente mais próxima de uma transliteração da forma escrita árabe (بحرين, como informa o consulente), mas não tem tradição em português. De qualquer modo, gostaria de observar que, em muitas variedades do árabe, históricas ou contemporâneas, o a soa como e, fenómeno que é conhecido como imala.1 Sendo assim, é provável que a forma Bareine seja a mais próxima da realidade fonética árabe.

Já o gentílico baremita é realmente discutível, porque muitas palavras terminadas em -em têm gentílico com -n-: Belém > belenense. Normalmente, o critério seguido nestes casos de derivação é de carácter etimológico. Por exemplo, o gentílico de Sudão é sudanês, que pressupõe uma forma do radical Sudan-, mais "próxima da  palavra árabe original, conforme se pode verificar no Dicionário Houaiss, onde se encontra o seguinte comentário: «em autores árabes medievais aparece o nome ár. Bilad-al-Suden, Bilad-es-Sudan, modernamente Bilād-as-Sūdan "o país dos negros", fonte do port. Sudão, esp. Sudán, it. ing. al. Sudan, fr. Soudan, cursivos a partir do sXVI-XVII». Posso referir outro caso, o de Lafões, designação de uma r...

Pergunta:

Dan Everett, no livro Don't Sleep, There Are Snakes: Life and Language in the Amazonian Jungle, aparentemente alega que a palavra jeito viria do verbo jazer, e quer dizer algo como «deitado», «acomodado» etc., oferecendo então uma explicação alternativa (e criativa, na minha opinião) para a origem do proverbial jeitinho brasileiro. Quando interpelado por um tradutor meu colega que leu o livro, ele não só confirmou isso como acrescentou que jazido é uma corruptela do original, que todos os dicionários brasileiros são ruins e que nenhum deles leva em consideração a evolução histórica da nossa língua. Incidentalmente, Aurélio, Houaiss e Luft, todos concordam em que a palavra jeito vem do latim jactus. O sr. Everett, em sua correspondência com meu colega, diz que aprendeu (e ensinou) isso quando viveu no Brasil, onde teria obtido um Phd em História do Desenvolvimento da Língua Portuguesa (sem precisar onde ou quando). Gostaria de saber se tem cabimento a inusitada teoria do sr. Everett. Agradeço antecipadamente.

Resposta:

O substantivo jeito está de facto etimologicamente relacionado com verbo jazer. Acontece, porém, que essa relação não é directa. 

Jeito evoluiu, por via popular, do substantivo jactus, us, «ação de lançar, arremesso, tiro, jato, lançamento», que deriva do supino jactum do verbo jacĭo, is, jēci, jactum, jacĕre, «lançar, deitar, jogar; atirar, arrojar contra ou sobre, enviar, despedir; estabelecer, pôr, colocar; exalar, deitar (cheiro); produzir, dar (com referência a uma árvore); proferir, dizer», da raiz i[ndo]-e[uropeia] *ye-, «lançar» (Dicionário Houaiss). O verbo jazer evoluiu do verbo jacĕo, es, ŭi, ĕre, que é cognato (evoluiu do mesmo radical) de jacĭo, embora, em contraste com este, revele um valor resultativo: «achar-se no estado de uma coisa lançada, estar estendido» (idem).

Sendo assim, deve dizer-se que jeito não é particípio passado de jazer, nem mesmo etimologicamente. Também não significa «deitado» nem «acomodado», ou seja, não exprime um estado; antes conserva o valor activo do radical de jacĭo. Na actualidade, essa interpretação activa é ainda válida em muitos contextos, associando-se um valor modal («ter jeito para alguma coisa» = «ter competência para fazer alguma coisa»). Em suma, as etimologias de jeito e jazer apontam para percursos morfológicos e semânticos diferentes.

Pergunta:

Estou a escrever um livro. Numa das passagens do livro, escrevi «Já aqui referimos o patético nome de Leopoldino de Saavedra, mas, como se fosse insuficiente, eis que nos adrega o nome de Eustáquio da Purificação.» E a minha dúvida reside aqui: seria mais correcto — ou simplesmente correcto — escrever «... eis que se nos adrega...»?

Obrigado.

Resposta:

É correcto empregar o verbo adergar ou adregar1 com pronome se, mas, se os dicionários consultados não coincidem quanto à atestação deste uso, também não se diga que falta desse se é erro sem perdão. Assim:

1. O Dicionário Houaiss indica o uso pronominal do verbo, quando significa «achar-se, estar por acaso diante de; deparar-se», isto é, quando se refere a localização de alguém. O Aurélio XXI regista o emprego pronominal do verbo, mas num sentido ligeiramente diferente, o de «apresentar-se», oferecer-se inesperadamente; deparar-se», sugerindo a circunstância de algo surgir no caminho ou no campo de visão de alguém. Destes dois dicionários, é o segundo que aponta a acepção e a sintaxe mais próximas do uso apresentado pelo consulente.

2. O Dicionário de Verbos e Regimes (São Paulo, Editora Globo, 2001), de Francisco Fernandes, acolhe o verbo também nas duas variantes, no sentido de «deparar-se, antolhar-se», abonando-o com uma frase em que o verbo está associado a um dativo de interesse mas não se encontra conjugado pronominalmente: «Parou assombrada ante o cenário que a pouca distância lhe adregou (Júlio Ribeiro, Carne, 31).

Esta indefinição da sintaxe de adergar pode dever-se ao seu uso escasso. No entanto, como sinónimo de deparar, é legítimo fixar-lhe um comportamento muito semelhante: se está correcto dizer «eis que se nos depara o nome de Eustáquio da Purificação», então igual cabimento tem dizer «eis que se nos adrega o nome de Eustáquio da Purificação».

O verbo adergar

Pergunta:

No seguimento de uma resposta anterior vossa sobre palavras compostas com o prefixo nano-, gostaria de perguntar se a palavra "nanobjecto" ("nano" + "objecto") deverá ter apenas um o, ou manter os dois, quando as duas palavras se combinam.

Muito obrigado.

Resposta:

No quadro do Acordo Ortográfico de 1945 (AO 45; no momento em que escrevo, ainda em vigor em Portugal), não encontro referência directa ao prefixo de origem grega nano-. Em princípio, como tem duas sílabas e termina em o, assemelha-se a auto-, neo-, proto- e pseudo-, elementos também provenientes do grego, que são explicitamente mencionados e comentados no texto do AO 45, Base XXIX:

«2.°) compostos formados com os elementos de origem grega auto, neo, proto e pseudo, quando o segundo elemento tem vida à parte e começa por vogal, h, r ou s: auto-educação, auto-retrato, auto-sugestão; neo-escolástico, neo-helénico, neo-republicano, neo-socialista; proto-árico, proto-histórico, proto-romântico, proto-sulfureto; pseudo-apóstolo, pseudo-revelação, pseudo-sábio

Tendo nano- uma estrutura silábica análoga a estes elementos, parece-me, legítimo aplicar-lhe a mesma regra. Sendo assim, recomendo nano-objecto.1

Em relação ao novo acordo, adoptar-se-á o critério exposto no n.º 1 da base XVI:

«Nas formações com prefixos (como, por exemplo: ante-, anti-, circum-, co-, contra-, entre-, extra-, hiper-, infra-, intra-, pós-, pré-, pró-, sobre-, sub-, super-, supra-, ultra-, etc.) e em formações por recomposição, isto é, com elementos não autónomos ou falsos prefixos, de origem grega e latina (tais como: aero-, agro-, arqui-, auto-, bio-, eletro-, geo-, hidro-, inter-, macro-, maxi-, micro-, mini-, multi-, neo-, pan-, pluri-, proto­, pseudo­, retro-, semi-, tele-, etc.), só se emprega o hífen...

Pergunta:

Gostaria de qual é o significado da expressão «é bom de crer».

Obrigada.

Resposta:

A expressão «é bom de crer» é equivalente a «é fácil acreditar, admitir», «é crível». O Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa (Porto, Livraria Chardron e Lello e Irmão Editores), de Énio Ramalho, regista «é bom de ver», expressão sintacticamente próxima, mas com valor de maior certeza, que significa «não é difícil compreender». O referido dicionário também regista isoladamente a entrada «bom de», com o sentido de «fácil de», atestada pela frase «este ponto de malha é bom de fazer com uma agulha grossa». Concluo, portanto, que as expressões «é bom de crer» e «é bom de ver» constituem casos particulares da associação de «(é) bom de» a um verbo no infinitivo, ocorrendo como predicados de uma oração completiva («é bom de crer/ver que o João não é mau rapaz»), como orações intercaladas («o João, é bom de crer/ver, não é mau rapaz») ou inseridas numa oração conformativa («como é bom de crer/ver, o João não é mau rapaz»).