Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Santo Tirso! Ou "Santo Terço"? Quem era? O que fez? E porquê há uma cidade portuguesa chamada Santo Tirso?

Resposta:

Não há relação etimológica entre o nome próprio Tirso e o substantivo comum terço. Este vocábulo tem, entre as suas acepções, a de «terça parte do rosário, composta de cinco dezenas de contas, para a reza da ave-maria, intercaladas por cinco contas, correspondentes ao padre-nosso» (Dicionário Houaiss).

Quanto a Tirso, lê-se no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, que, sob a forma de Santo Tirso (Santo Tisso, forma arcaica), ocorre como topónimo do Norte de Portugal, na Galiza, em Leão e nas Astúrias. A origem de Santo Tirso é a seguinte:

«Tirso [...] inicialmente era antr[opónimo], mas sem uso actual em port[uguês] [...]: em 968 vivia um Tirsum [...]; mais tarde apenas tenho conhecimento de, nessa função, Tisso [...]: "Don Tisso Perez", Pêro da Ponte, no C[ancioneiro da] B[iblioteca] N[acional], n.º [1561]. Do gr[ego] thýrsos, pelo lat[im] thyrsus, "talo", tornado nome próprio em honra da vara enfeitada de hera e pâmpanos, usada por Baco e pelos seus seguidores, especialmente as Bacantes. Assim, deste acessório de culto pagão deriva  o nome de vários santos. O de maior veneração, no Ocidente europeu, era um atleta de Cesareia, na Bitínia, martirizado no séc. III (segundo Vald., festas a 24-I e a 24-IX) [*]. A vila [hoje cidade], antes da fundação do seu mosteiro beneditino dedicado a Santo Tirso, chamar-se-ia Moreira de Riba de Ave. Omosteiro teria sido fundado (ou reedificado) por D. Aboaçar Ramires, filho bastardo de Ramiro II, rei de Leão (931-950) [...]. Existiria ali um templo dedicado ao deus galaico-romano Turíaco [...], cujo nome, ...

Pergunta:

Gostava de saber se existe alguma diferença entre equiterapia e equoterapia, uma vez que ambas pertencem ao campo semântico da hipoterapia.

Obrigada.

Resposta:

Os termos em causa são neologismos que ainda não se encontram dicionarizados. A consulta de páginas de Portugal na Internet permite inferir que se trata de sinónimos. Assim, numa pesquisa Google, o termo que mais resultados obtém é hipoterapia (6910), com o seguinte significado, segundo o sítio do Centro Hípico da Costa do Estoril:

«Hipoterapia significa tratamento com a ajuda do cavalo e destina-se a indivíduos com deficiência.»

O termo é formado pelo radical hip-, do grego híppos, ou, «cavalo» (Dicionário Houaiss), a vogal de ligação -o-, que é característica de compostos morfológicos de origem grega, e -terapia, também do grego therapeía, «cuidado, atendimento», «der[ivado] do v[erbo] therapeúó "curar, tratar, cuidar"» (idem).

Menos resultados têm as formas equiterapia (128) e equoterapia (137). Ambas correspondem a compostos híbridos, nos quais o radical equ-, de origem latina (equus, equi, «cavalo»), ocorre em lugar de hipo-. Convém observar que, dos pontos de vista morfológico e etimológico, equoterapia é forma mais correcta do que equiterapia: geralmente, a vogal de ligação antes de radicais de origem não latina é -o-.1

1 «[...] [E]sta vogal de ligação é um resíduo de um marcador casual na estrutura dos compostos do altim e do grego antigo. É por esta razão que, no português, se encontram duas diferentes vogais de ligação: -o- e -i-. Os dados disponívei...

Pergunta:

Qual o nome que se dá a um habitante de Saint-Malo?

Onde posso encontrar esta informação para os habitantes de cidades estrangeiras?

Obrigada.

Resposta:

Em português não existe gentílico dicionarizado ou de uso generalizado que designe os naturais e os habitantes de Saint-Malo (Bretanha, França). Em francês, diz-se malouins.

Pergunta:

Há, aqui no Brasil, quem defenda que o prefixo anti- somente deve ser usado com adjetivos e o prefixo contra nos demais casos. Assim, anticomunista, antissemita, antissocial, anti-inflamatório, etc. Por outro lado: contrafurto, contraespionagem, contra-ataque, etc.

À luz do uso correto da língua portuguesa, isso procede?

Agradecido pela resposta.

Resposta:

Não se pode fazer essa generalização quando ocorrem exemplos como anti-semitismo1 e antimatéria, por um lado, e contracultural ou contraproducente, por outro (cf. Dicionário Houaiss). Há até formas prefixadas com anti- que podem ser usadas quer como substantivos quer como adjectivos: antigripal e anti-inflamatório (este também usado como substantivo no português europeu). Assinale-se, contudo, que muitas das palavras que incluem o prefixo anti- são de facto adjectivos, mesmo que a base seja um substantivo (ver Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, Inovação Lexical em Português, Lisboa, Edições Colibri, 2005, pág. 31).

1 Antissemitismo, de harmonia com o Acordo Ortográfico de 1990.

Pergunta:

O qual como conjunção pluraliza? Ou seja, diz-se: «Corríamos quais baratas tontas pelo escritório», ou «Corríamos qual baratas tontas pelo escritório»?

Obrigada.

Resposta:

Numa construção comparativa, qual pode concordar com o substantivo a que estiver associado, ou seja, pluraliza. É por isso que considero «corríamos quais baratas tontas» melhor do que «corríamos qual baratas tontas». Mas a resposta que dou carece de algumas explicações, até porque o estatuto conjuncional de qual em orações comparativas é discutível.

Celso Cunha e Lindley Cintra, na Gramática do Português Contemporâneo, incluem qual entre as conjunções subordinativas (pág. 581), mas, mais adiante, apresentam um exemplo de concordância de qual no plural, sem que isso lhes suscite comentários (pág. 608):

«Havia já dous anos que nos não víamos, e eu via-a agora não/qual era,/mas/qual fora,/quais fôramos ambos,/porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis» (Machado de Assis, OC, I, 419).

No início do século XX, Augusto Epiphanio da Silva Dias, na Sintaxe Historica Portuguesa (1.ª edição de 1917, pág. 85), referia-se a qual como pronome relativo usado em sentido comparativo (mantenho a ortografia original):

«b) Qual emprega-se em sentido comparativo:

1) nos similes e nas exemplificações:

O orar fervente as lagrimas enxuga,|qual prado o leste (Herc. Poesias, 157)

[a poesia epica]... quer estas vozes peregrinas, como ensinão os legisladores d'esta arte, quaes forão Aristoteles, Horacio, e outros (En.Port., Prologo).

Neste caso os escriptores empregavam ás vezes qual invariavel, á maneira do adverbio como: