Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O qual como conjunção pluraliza? Ou seja, diz-se: «Corríamos quais baratas tontas pelo escritório», ou «Corríamos qual baratas tontas pelo escritório»?

Obrigada.

Resposta:

Numa construção comparativa, qual pode concordar com o substantivo a que estiver associado, ou seja, pluraliza. É por isso que considero «corríamos quais baratas tontas» melhor do que «corríamos qual baratas tontas». Mas a resposta que dou carece de algumas explicações, até porque o estatuto conjuncional de qual em orações comparativas é discutível.

Celso Cunha e Lindley Cintra, na Gramática do Português Contemporâneo, incluem qual entre as conjunções subordinativas (pág. 581), mas, mais adiante, apresentam um exemplo de concordância de qual no plural, sem que isso lhes suscite comentários (pág. 608):

«Havia já dous anos que nos não víamos, e eu via-a agora não/qual era,/mas/qual fora,/quais fôramos ambos,/porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis» (Machado de Assis, OC, I, 419).

No início do século XX, Augusto Epiphanio da Silva Dias, na Sintaxe Historica Portuguesa (1.ª edição de 1917, pág. 85), referia-se a qual como pronome relativo usado em sentido comparativo (mantenho a ortografia original):

«b) Qual emprega-se em sentido comparativo:

1) nos similes e nas exemplificações:

O orar fervente as lagrimas enxuga,|qual prado o leste (Herc. Poesias, 157)

[a poesia epica]... quer estas vozes peregrinas, como ensinão os legisladores d'esta arte, quaes forão Aristoteles, Horacio, e outros (En.Port., Prologo).

Neste caso os escriptores empregavam ás vezes qual invariavel, á maneira do adverbio como:

Pergunta:

«É uma via de mão dupla.»

«Em uma rua de mão dupla o movimento é constante.»

Nessas duas frases, «mão dupla» tem hífen? Existe a expressão «mão dupla» com e sem hífen?

Resposta:

Antes da adopção do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), o Dicionário Houaiss (2001) registava mão dupla (s. v. mão), sem hífen, e o Dicionário UNESP (2004), dirigido por Francisco S. Borba, atestava mão única (s. v. mão), também sem hífen. Com o AO90 em vigor, vê-se que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras é omisso em relação a mão dupla. Por conseguinte, a expressão continuará a escrever-se sem hífen, pelo menos, no âmbito da norma brasileira.1

1 No português europeu, não se usa mão dupla, antes ocorrendo «trânsito nos dois sentidos» ou «via com dois sentidos».

 

Pergunta:

Estou lhes escrevendo, pois surgiu no decorrer de meus estudos uma dúvida sobre sintaxe.

Em uma voz ativa, se eu tenho um predicativo do objeto direto, esse mesmo elemento representado será predicativo do sujeito na passagem para a voz passiva.

Mas se eu, na voz ativa, tiver um predicativo do sujeito com um verbo, nesta oração, sendo transitivo direto, gerando assim uma voz passiva, o termo que foi predicativo do sujeito será o quê?

Em exemplo concreto eu tenho:

«A noiva ofereceu os lábios contrariada» (predicativo do sujeito).

«Os lábios foram oferecidos pela noiva contrariada» (predicativo? adjunto adnominal?)

Desde já agradeço a atenção.

Resposta:

Procurando manter o material lexical na correspondência entre a frase activa e a passiva, verá que não se pode conservar o predicativo, o qual terá de passar, na voz passiva, a aposto adjectival:

«Os lábios foram oferecidos pela noiva, contrariada.»

Alguns autores consideram que o aposto não pode ser realizado por um adjectivo, mas há outros que defendem de forma fundamentada essa possibilidade.

Pergunta:

Gostaria de traduzir para português o provérbio ou expressão «to draw the shortest straw». Tenho sem sucesso procurado uma expressão portuguesa que transmita esta ideia de azar ou de ficar com uma tarefa, normalmente indesejada, para fazer depois de os intervenientes se submeterem a este processo de selecção.

Não fazemos isto em Portugal? Como é que lhe chamamos? Haverá algum provérbio semelhante?

Resposta:

Sugiro a expressão «calhar na rifa», que, em Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas — Português, de António Nogueira Santos (Edições João Sá da Costa, 2006), aparece assim registada:

«caber/cair/calhar/sair alguma coisa a alguém na rifa: ser contemplado com alguma coisa em resultado de sorteio por meio de rifa; fig) ver-se, involuntariamente, em situação desagradável.»

Note que estamos a falar de uma expressão idiomática e não de um provérbio. Segundo o Dicionário Houaiss, uma expressão idiomática é uma «locução ou frase cristalizada numa determinada língua, cujo significado não é deduzível dos significados das palavras que a compõem e que ger[almente] não pode ser entendida ao pé da letra (p. ex., bater perna, falar para as paredes, bilhete azul, etc.)»; a expressão idiomática pode sofrer alterações na flexão das palavras que a constituem: «ele bateu perna»; «estás a falar para as paredes». O provérbio corresponde a uma «frase curta, ger[almente] de origem popular, freq[uentemente] com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral (p. ex.: Deus ajuda a quem madruga)» (idem); geralmente, usa-se sem alterações vocabulares, morfológicas ou sintácticas: «O João conseguiu adiantar muito trabalho; é caso para dizer: Deus ajuda a quem madruga

Pergunta:

Ao falarmos do poder dos Habsburgo, podemos utilizar o nome como adjectivo?

Ex.: «o poder habsburgo»

Em caso afirmativo, o adjectivo habsburgo deve ser escrito com minúscula, ou maiúscula?

Obrigado.

Resposta:

Habsburgo1 é substantivo próprio e não deve ser usado como adjectivo. As formas habsburguês, habsburguense e habsburguiano são mais adequadas como adjectivos correspondentes.

 

1 Os Habsburgos constituíram uma importante família que ocupou o trono de várias monarquias europeias, nomeadamente, o Sacro-Império Romano-Germânico (do século XV ao século XVIII), o Império Austro-Húngaro (de 1867-1918) e o reino de Espanha (1506-1700). Os reis espanhóis que governaram Portugal entre 1580 e 1640 (Filipe II, Filipe III e Filipe IV) pertenciam ao ramo espanhol dos Habsburgos (os chamados Austrias em espanhol).